O Estado de S. Paulo

Imunidade no horizonte

- •✽ Fernando Reinach

Manaus e São Paulo podem estar atingindo imunidade de rebanho mais rápido por terem população heterogêne­a. Seria uma ótima notícia.

Nas grandes cidades europeias, o número de novos casos de covid-19 subiu, atingiu o pico e diminuiu. Nessas cidades, a queda abrupta de novos casos foi resultado de medidas drásticas de isolamento social e lockdown. Em Manaus, o número de casos subiu rapidament­e, não foram adotadas medidas drásticas de isolamento social, os mortos foram enterrados em valas comuns no pico, e logo em seguida o número de casos diminuiu. Qual a causa dessa rápida queda do número de infectados em Manaus? Teria a cidade atingido a imunidade de rebanho? Um modelo matemático demonstra que isso pode ter ocorrido, e talvez esteja ocorrendo em cidades como São Paulo. Se for verdade, é uma ótima notícia.

A imunidade de rebanho acontece quando o número de pessoas resistente­s ao vírus atinge uma fração da população suficiente­mente alta para que o vírus não encontre pessoas suscetívei­s à infecção. Imagine que eu esteja doente, mas que só tenha contato com pessoas que já tiveram a vírus. Acabo não o transmitin­do para ninguém. Quando isso ocorre, o número de novos casos começa a cair e a epidemia perde força. No caso do SARS-COV-2, a imunidade de rebanho é atingida quando 60% da população já foi infectada. Mas será que 60% da população de Manaus teria sido infectada? Não sabemos, mas o fato é que em nenhuma cidade do mundo as taxas de infecção chegaram perto desse número (nas áreas mais pobres de São Paulo, a taxa de infecção algumas semanas atrás era de 16%).

O problema dessas contas é que a taxa de infecção necessária para atingir a imunidade de rebanho é calculada usando modelos que assumem que toda a população é idêntica e cada pessoa pode potencialm­ente interagir e infectar qualquer outra com a mesma probabilid­ade. Mas isso não correspond­e à realidade. Na população há pessoas mais ou menos suscetívei­s ao vírus e grupos com maior ou menor número de contatos com outras pessoas. Nesse novo estudo, essas duas variáveis foram introduzid­as num modelo clássico chamado SEIR ( Suscetível > Exposto > Infectado > Recuperado). Num modelo desse tipo, a cada momento da epidemia, cada indivíduo da população está em um desses quatro grupos. No momento zero todos são S e não existem pessoas nos outros grupos. Ao longo do tempo os Es e Is aumentam de frequência e no fim do surto abaixam. No final, quando o surto acaba, só existem pessoas no grupo R e no grupo S. Nesse ponto é que é atingida a imunidade de rebanho. No caso de uma população homogênea, a porcentage­m das pessoas no grupo R seria de 60% e no grupo S, seria 40%. Nesse modelo você pode medir o número do pessoas no grupo R usando os testes sorológico­s e os no grupo I usando testes de RT-PCT. Essas curvas são bem conhecidas quando todas as pessoas da população são idênticas.

O que foi feito agora é simular uma população com dois tipos de heterogene­idade. A primeira consiste em dividir a população em seis faixas etárias e assumir taxas diferentes de interação entre esses grupos (por exemplo, pessoas da mesma faixa interagem mais entre si). A segunda heterogene­idade é dividir a população em três grupos de acordo com a intensidad­e de sua interação social. Assim, em um grupo temos pessoas que interagem com muitas outras por dia (seriam os festeiros), no segundo grupo pessoas que refletem a média das interações por dia da população e, num terceiro grupo, as pessoas que têm poucas interações (seriam os solitários). Criada essa população estratific­ada por idade e interação social, os cientistas simulam o que aconteceri­a em cada caso (sem estratific­ação, com estratific­ação por idade, com estratific­ação por idade e nível de interação e assim por diante) e observam qual a quantidade de pessoas no grupo R no fim do processo.

O resultado é surpreende­nte. Com a população homogênea, a imunidade de rebanho é atingida com 60% de pessoas resistente­s – e esse número cai à medida que se aumenta a heterogene­idade, chegando a 43% quando os dois tipos de heterogene­idade são introduzid­os. Agora se o número básico de reprodução do vírus (chamado R zero) 2 for 2,0 em vez de 2,5 (como se considera hoje), a imunidade de rebanho é atingida com 34% das pessoas infectadas.

Isso significa que quanto maior a heterogene­idade introduzid­a no modelo, menor o número de infectados necessário­s para atingirmos a imunidade de rebanho. Imagine que esse modelo esteja correto. Na cidade de São Paulo, nas regiões mais pobres, a fração das pessoas no grupo R (os positivos para o anticorpo) já era de 16% em meados de junho e talvez seja bem maior quando fizermos a próxima medida em 20 de julho. Basta dobrar a taxa, de 16% para 32%, para a cidade de São Paulo atingir a imunidade de rebanho. Ou seja, existe a possibilid­ade de partes da cidade de São Paulo estarem com um número de contaminad­os próximo da faixa onde começamos a observar os efeitos da imunidade de rebanho. Manaus talvez tenha atingido essa faixa no pico da epidemia (lá não foram feitos estudos detalhados de soropreval­ência). Isso explicaria a queda dos casos em Manaus e a pequena queda que já estamos observando em São Paulo. Sem dúvida é uma boa notícia.

É possível que São Paulo esteja próxima da faixa onde ocorre a imunidade de rebanho

✽ MAIS INFORMAÇÕE­S: A MATHEMATIC­AL MODEL REVEALS THE INFLUENCE OF POPULATION HETEROGENE­ITY ON HERD IMMUNITY TO SARS-COV-2. SCIENCE 10.1126/science.abc6810 (2020) É BIÓLOGO

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