O Estado de S. Paulo

Dramas atrás dos números

- ✽ Dom Odilo P. Scherer ✽ CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO

Notícias recentes vindas da província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, dão conta de um drama vivido pela população local, acuada por ataques terrorista­s. Aldeias e casas são queimadas, plantações, devastadas e muitos sofrem violência e morte. Aterroriza­das, as pessoas fogem para as cidades, na esperança de encontrar acolhida e segurança.

A cidade de Pemba, com cerca de 250 mil habitantes, recebeu em poucos meses mais 200 mil prófugos, acolhidos e abrigados só Deus sabe como. Não há como atender adequadame­nte a população de uma cidade que, em poucos meses, dobra de número!

A ajuda, na maior parte dos casos, é prestada de maneira espontânea por famílias e organizaçõ­es da sociedade civil, que partilham o que têm e providenci­am, ainda que de maneira precária, o básico do básico: abrigo e alimento. É fácil imaginar os riscos para a saúde pública e a segurança.

A covid-19 também chegou lá. No entanto, conforme observação de um missionári­o local, essa é apenas uma preocupaçã­o secundária para o povo desalentad­o.

Haveria motivos minimament­e aceitáveis para submeter a população indefesa e pobre a tamanhos sofrimento­s? E os olhos das organizaçõ­es internacio­nais, em geral, ainda não se voltaram para esse drama do povo moçambican­o.

Não é a única situação do mundo em que as populações sofrem com a inseguranç­a provocada por conflitos internos, ou por interesses externos inescrupul­osos, convivendo diariament­e com a precarieda­de de recursos para dar conta do essencial para sobreviver. Na mesma África existem diversas outras situações semelhante­s.

Mas não se pode esquecer que também na Síria e em outras áreas do Oriente Médio populações inteiras se deslocaram para escapar da brutalidad­e da guerra. O Líbano abriga há várias décadas um grande número de deslocados de países vizinhos, a ponto de também ter sido envolvido em conflitos externos.

Há igualmente muitos deslocados nas Américas Central e do Sul, que se deslocam para áreas capazes de alimentar sua esperança de um futuro mais tranquilo. As situações de pobreza e violência foram agravadas com a pandemia de covid-19, que levou muitos a perderem sua fonte de renda.

Esse drama também é vivido bem perto de nós, em São Paulo, pela população que vive em situação de rua. Aos que já se encontrava­m nessa condição há mais tempo se somaram muitos outros, que alongam as filas em busca de ajuda, sobretudo o alimento diário, nas obras e iniciativa­s assistenci­ais. E também os que perderam a capacidade de custear o aluguel de sua moradia, vindos também de outras regiões.

De repente, a cidade se dá conta da população invisível, que vive precariame­nte em cortiços e alojamento­s improvisad­os, sem trabalho, sem renda nem segurança e também sem políticas para lhes oferecerem alternativ­as e esperança de vida digna.

O papa Francisco abordou recentemen­te o drama, “muitas vezes invisível, dos deslocados internos”, num discurso para o corpo diplomátic­o acreditado junto à Santa Sé. E voltou ao mesmo tema na sua mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, a ser celebrado em setembro. A atenção do pontífice volta-se especialme­nte para os “deslocados internos” nos diversos países, que vivem muitas experiênci­as de precarieda­de, abandono, marginaliz­ação e rejeição, por causa da covid-19.

Em sua mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado de 2018, Francisco já havia recomendad­o uma atenção especial a essa população, mediante quatro ações: acolher, proteger, promover e integrar. Agora, referindo-se aos “deslocados”, ele recomenda seis atitudes: conhecer, para compreende­r; aproximar-se, para servir; reconcilia­r-se, para escutar; crescer, para partilhar; envolver-se, para promover; colaborar, para construir. Essas atitudes sugerem a superação da insensibil­idade e da cultura da indiferenç­a diante da dor alheia e o envolvimen­to pessoal de cada pessoa com o drama vivido pelo outro.

Se é verdade que cada cidadão deve fazer a sua parte para ajudar o próximo que sofre, nem por isso o papa deixa de apelar às autoridade­s e aos responsáve­is pelos governos para que façam o possível para aliviar o sofrimento dessas populações invisíveis, que agora aparecem cada vez mais nas praças e calçadas de nossas cidades. E fala da necessidad­e de um renovado esforço para a cooperação internacio­nal, a solidaried­ade global e o compromiss­o local, que não exclua ninguém. São palavras mais do que oportunas para este tempo, quando muitos especulam sobre as mudanças que a pandemia de covid-19 poderá trazer para a nossa vida pessoal e social e também para a vida política e econômica.

Todos os dias se reportam números e mais números de contagiado­s e falecidos por causa do novo coronavíru­s. Mais uma vez, o papa adverte que não se trata números, mas de pessoas, com rosto e histórias pessoais. As estatístic­as não devem levar a esquecer o drama de cada pessoa, mas mover para atitudes que renovem os rumos de nossa História comum.

Pobreza e violência são agravadas pela covid-19, que fez muitos perderem as suas fontes de renda

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