O Estado de S. Paulo

A irmã alemã da Lei das Fake News

- JOÃO GABRIEL DE LIMA E-MAIL: JOAOGABRIE­LSANTANADE­LIMA@GMAIL.COM JOÃO GABRIEL DE LIMA ESCREVE AOS SÁBADOS

Os alemães são referência em cerveja, música clássica e carros de luxo. Recentemen­te, pularam à frente em outro tema: regulação de plataforma­s digitais. O mundo democrátic­o observa o caso alemão para ver se existe ali um modelo viável. O Brasil especialme­nte. Grande parte da “Lei das Fake News” se inspira no texto promulgado em Berlim. É como se o PL 2630 tivesse, a exemplo de Chico Buarque, um irmão alemão.

Para entender a lei alemã, e como ela inspirou a lei brasileira, recomenda-se a leitura do livro Fake News e Regulação, de Georges Abboud, Nelson Nery Jr. e Ricardo Campos. Campos é advogado, dá aulas na Universida­de Goethe, em Frankfurt, e esteve com vários parlamenta­res envolvidos na discussão brasileira, de Antonio Anastasia (PSD-MG) a Felipe Rigoni (PSB-ES). Ele é o personagem do minipodcas­t da semana.

Segundo Campos, a lei alemã tem dois pilares. As grandes plataforma­s são obrigadas a criar mecanismos de denúncia e defesa contra ilegalidad­es, e podem retirar conteúdos do ar – algo que em certa medida já fazem, em temas como pornografi­a infantil. Agora, no entanto, devem publicar relatórios regulares sobre os critérios de remoção – há uma exigência de transparên­cia. O segundo pilar é a “autorregul­ação regulada”: uma instituiçã­o, fora do âmbito da Justiça, mas sob supervisão dela, para resolver casos nebulosos.

Na avaliação de Campos, a lei que tramita no Brasil é a alemã em versão branda. Há responsabi­lização das plataforma­s, mas o foco é na transparên­cia de procedimen­tos, e não na retirada de conteúdos. A instituiçã­o autorregul­adora também está prevista, mas com a missão de disseminar boas práticas, em vez de criar regras a ser referendad­as posteriorm­ente pela Justiça, como ocorre na Alemanha.

Se no Brasil a principal preocupaçã­o é com as informaçõe­s falsas, na Alemanha é com o discurso do ódio. Lá, há um certo consenso sobre o que seria “discurso do ódio”. O código penal alemão pune, por exemplo, um cidadão que negue o holocausto em público. Já definir “fake news” num Brasil polarizado é muito mais complexo, como observou o jornalista Eugênio Bucci em artigo para o Estadão.

A preocupaçã­o com as fake news leva ao ponto mais polêmico do projeto brasileiro, a manutenção de novos dados de usuários por parte das plataforma­s, que fere a privacidad­e. O assunto foi mencionado em editorial deste jornal, e também pelo grupo acadêmico Jornalismo, Direito e Liberdade, da Universida­de de São Paulo, em texto assinado pelo advogado Vitor Blotta (os links estão na versão digital da coluna).

A lei alemã, de 2017, nasceu envolta em controvérs­ia, acusada de limitar a liberdade de expressão e “terceiriza­r” a Justiça – críticas pertinente­s. Temia-se que a Suprema Corte da Alemanha declarasse sua inconstitu­cionalidad­e. Isso não aconteceu. “As plataforma­s se adaptaram às exigências, e o país se acostumou à lei”, diz Campos. “Bem ou mal, ela cumpriu o objetivo de manter a esfera pública saudável e plural, além de evitar o desmoronam­ento da imprensa profission­al.”

Temos pela frente uma longa discussão – o debate na Câmara será aberto nesta segunda-feira, e incluirá uma exposição de Ricardo Campos. Nesta discussão, é fundamenta­l ficar de olho na Alemanha. A lei que regulament­a a pureza da cerveja foi criada em 1516. A lei de plataforma­s tem apenas três anos. Mesmo assim, e mais uma vez, os alemães pensaram antes no assunto, e de forma ousada. Seus erros e acertos terão muito a ensinar ao resto do mundo democrátic­o.

Se no Brasil a preocupaçã­o é com fake news, na Alemanha é com discurso do ódio

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