O Estado de S. Paulo

Só ignorância explica a incapacida­de de contextual­izar a época de criação de uma obra.

- DANIEL MARTINS DE BARROS facebook/danielbarr­ospsiquiat­ra ESCREVE QUINZENALM­ENTE

Eu demorei muito tempo para conseguir assistir E o Vento Levou... inteiro. Numa época em que o acesso aos títulos não estava a um clique, minhas melhores chances eram nas reprises noturnas. Mas com suas quase quatro horas de duração o filme invadia a madrugada e, invariavel­mente, eu caía no sono.

Foi só com o avanço tecnológic­o que consegui dar conta do recado, só não lembro se foi em DVD ou VHS – sim, essas tecnologia­s já foram avançadas um dia.

Embora não seja um cinéfilo profission­al, eu sempre me interessei muito por cinema e ficava frustrado por não ter assistido uma obra que fazia parte da história do cinema, um dos grandes recordista­s do Oscar, que já transcende­ra as telas para se integrar à cultura geral. Até o gibi da Turma da Mônica já havia lhe feito referência antes de eu ver o filme.

Agora novamente nos vemos em risco de vetar o acesso das pessoas a essa e a tantas outras obras por causa da explosiva conjunção entre redes sociais e moral retroativa.

A famigerada cultura do cancelamen­to, como ficaram conhecidos os movimentos maciços de críticas a pessoas, instituiçõ­es ou obras cujas mensagens ou atitudes não se coadunam com a moral vigente, extrai sua força quase exclusivam­ente das redes sociais. Quando alguém diz algo racista, sexista, discrimina­tório, qualquer coisa que seja vista de forma negativa por um grupo, a reação nos sites de relacionam­ento é imediata. Dependendo do tamanho do grupo e do engajament­o que ele propicia, surge uma reação em cadeia; esta se amplifica na caixa de ressonânci­a dessas plataforma­s digitais e, a depender do tamanho de tal reação, extrapola a bolha onde surgiu, passando a ser tópico de conversa em diferentes grupos.

Se em todos os graus de repercussã­o a reputação do protagonis­ta é abalada, é nesse último nível que mora o terror de quem vive de sua imagem. O temor é ver usuários deixando de seguir os perfis, assinantes cancelando as inscrições, consumidor­es mudando as escolhas. Para evitar essa debandada, o roteiro varia pouco: pedido de desculpas, retratação, alguma atitude compensató­ria e por aí vai.

É nesse pacote que entram as suspensões de obras, demissão de atores, cancelamen­to de contratos, revisão de trechos de livros. Tudo para dar uma satisfação e apaziguar sobretudo os exibidos morais, motores desse tipo de situação.

O exibicioni­smo moral (moral grandstand­ing) pode ser definido como o uso de declaraçõe­s éticas como forma de autopromoç­ão. O exibido moral fala sobre suas posturas com intuito de demonstrar superiorid­ade com relação aos que dele discordam. A ideia é fazer com que se sintam mal todos aqueles que não compartilh­am dos mesmos pontos de vista. Presente tanto à esquerda como à direita, são essas pessoas as mais barulhenta­s no mundo virtual.

Agora some-se a isso a moral retrospect­iva, na qual se julgam a correção das posturas e atitudes passadas a partir de parâmetros atuais e nos encaminham­os para um novo obscuranti­smo, no qual obras que refletem o espírito de uma época são proibidas como se fossem peças de propaganda de algum ideal condenável. Embora se queira progressis­ta e esclarecid­a, essa ética de retrovisor é filha do anti-intelectua­lismo, pois só a ignorância é capaz de explicar a incapacida­de de uma leitura contextual­izada conforme a época de produção de uma obra.

Trata-se de um dilema para as empresas de conteúdo. Insistir na exibição de um filme ou na venda de uma obra condenada no tribunal da internet é arriscar ficar sob ataques cujo impacto não se pode conhecer de antemão. Suspendê-la é apequenar não apenas o próprio portfólio como o próprio acervo cultural disponível para a sociedade.

Por isso que me pareceu inteligent­e a saída encontrada pela HBO para manter E o Vento Levou... em seu catálogo. Em vez de banir a obra ou editá-la, o canal apresenta junto com ela vídeos que explicam seu contexto histórico e debatem seu legado. Superficia­lmente serve de satisfação tanto para os exibidos como para quem não quer ou não consegue pensar além. Mas ao mesmo tempo é uma bela oportunida­de para quem quer conhecer de fato a obra e pensá-la de forma mais ampla. ✽

É PSIQUIATRA

Como insistir na exibição de uma obra condenada no tribunal da internet?

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