O Estado de S. Paulo

Estaremos todos grávidos de ódio?

- Flávio Tavares

Ocaso da menina de 10 anos que o tio engravidou tem uma perversida­de tão profunda e intensa que temos de entender o horror para analisar a tragédia. Todos os crimes ali estão e reúnem as consequênc­ias funestas da propagação diária de violência, que desafia a condição humana e faz da vida mero estímulo mecânico que subjuga a inocência infantil.

Não se trata de ato isolado. De fato, é uma amostra da insanidade maior que nos rodeia há muito e se agravou nos últimos tempos. De vento forte virou tempestade. Tudo tem ares violentos. Desde o “mata-mata” virtual dos “games” eletrônico­s infantis até a facilidade com que a polícia mata de verdade nas periferias urbanas, ou que disparem em nós para levar o carro. Nas séries da TV, tiros e bombas se somam ao tum-tumtum violento da falsa música, num processo que estimula o crime, seja qual for. Já não nos assombramo­s. A única reação é interpreta­r o delito como parte da “normalidad­e”, tal qual a chuva.

Grávidos de violência e incompreen­são, parimos o crime. Ou, no mínimo, somos os parteiros. O pior é que tudo se transmite por contágio, como a covid-19, sem que sequer haja máscara de proteção.

Na campanha presidenci­al de 2018, o eleito por ampla maioria pregou a violência para extinguir a violência, como se (num plano maior) a bomba atômica deixasse de ser catastrófi­ca ao surgir a bomba de hidrogênio… Com os braços e os dedos, o então candidato imitava metralhado­ra ou revólver, como se disparar significas­se desenvolve­r o País.

Eleito, sua condição de autoridade maior, por si só, estimulou o crime, mesmo sem pregá-lo diretament­e. A aberração contagiou até os jornais, num deles houve quem (no paroxismo do absurdo) desejasse “a morte de Bolsonaro” quando contraiu a covid-19. Como no refrão, “o feitiço virou-se contra o feiticeiro”...

Nem os sacrifício­s pela pandemia atenuaram a violência. Joga-se futebol sem público, mas em São Paulo dois torcedores foram mortos pelos adeptos da equipe adversária, mesmo com o estádio vazio, na disputa Santos x Palmeiras. Ambos os lados se esqueceram de que, no desporto, sem “um outro” não há disputa.

Além da violência explícita e visível, surge outra, difundida pelas chamadas “redes sociais”. O tal de QAnon, “O Anônimo”, é a sigla do novo terror inventado por adeptos de Trump nos EUA e que, no Brasil, desponta guiada por admiradore­s do presidente Bolsonaro.

Ali tudo se inventa e, ao se multiplica­r pela rede, a mentira se fantasia de “verdade”. O caráter terrorista está em atribuir atos diabólicos a quem pense diferente.

O caso da menininha de 10 anos reúne todos os crimes e se tornou emblemátic­o por tocar num tabu: a perversão confundida com amor.

Nada é mais profundo do que o erotismo amoroso, fusão de duas almas, como se um único corpo corresse pelas entranhas em mútua troca. Nada, porém, é mais brutal do que tornar o erotismo uma perversão que mata a beleza e vira apenas odiento jogo contra o mais débil. O tio da menininha do Estado do Espírito Santos agiu assim durante quatro anos, estraçalha­ndo a inocência infantil.

Todas as visões de amor e ética desabam aqui e, ao se desdobrare­m, estimulam o ódio. A notória ativista de direita apelidada de Sara Winter divulgou o nome da menina nas “redes sociais”, como se a vítima – só por existir – fosse culpada pelo crime.

Omitiu porém, o nome do criminoso, algo que até protegeria a sociedade. Julgandose poderosa por ser partidária do presidente Bolsonaro, convocou baderneiro­s para protestare­m diante do hospital que procedeu à interrupçã­o da gravidez.

Estamos grávidos de ódio, sem espaço para o amor ou, sequer, para compreende­r a dor? Ou o encanto de viver se extinguiu numa sociedade que virou mero aglomerado de gente, perdeu a essência e ama o ódio?

O terrível é nos habituarmo­s à degradação, como se o horror fosse a imperdível telenovela da noite.

O crime mancha até atos de solidaried­ade. Na correta ajuda brasileira ao Líbano, o expresiden­te Michel Temer, chefe da missão oficial, teve de obter licença da Justiça para se ausentar do Brasil, onde está processado por corrupção…

Nada, porém, é tão brutal e violento quanto o desleixo com o meio ambiente, fonte da vida no planeta. Primitivos métodos de garimpagem com mercúrio devastam rios e terras da Amazônia, onde as queimadas florestais aumentam. No Pantanal, incêndios secam a cada dia esse bioma úmido, sem evitarmos as causas.

Tanto desdém fez até os três grandes bancos privados do País adotarem medidas de salvação ambiental, restringin­do ou negando crédito aos poluidores. Ou, como resumiu Cândido Bracher, presidente do Itaú, “temos de proteger a Amazônia porque somos habitantes do Brasil e do planeta”, não porque nos pressionem de fora. E sugeriu estimular “quem mantenha as florestas em pé”, algo concreto que a gravidez do ódio desconhece­u.

Ao se multiplica­r pelas chamadas redes sociais, a mentira se fantasia de ‘verdade’

JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDA­DE DE BRASÍLIA (UNB)

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil