O Estado de S. Paulo

Dinheiro, não, um certo rumo

- Fernando Gabeira

Neste momento se discute muito o Orçamento. É uma discussão tediosa se nos concentram­os apenas nos números.

Na verdade, o que se discute agora é basicament­e a ajuda emergencia­l até dezembro. Não dava para pagar os R$ 600. Caiu para R$ 300. Daqui a pouco surgirá a nova discussão, agora sobre o programa Renda Brasil, que pretende ser um serviço continuado, nos moldes do Bolsa Família.

Tudo isso é estimulado pela campanha à reeleição de Bolsonaro. Esses programas foram sempre necessário­s, mas no passado ele se opunha a eles, chamava-os de Bolsa Farinha e os via como uma forma de comprar votos. É sempre assim: no governo dos outros é suborno, no nosso é medida necessária para atenuar as duras condições de vida da população mais pobre.

Por causa do seu apelo eleitoral, só se discute mais intensamen­te a ajuda aos pobres. Mas sabemos que, apesar de garantir votos, o Brasil precisa de mais: de um projeto de retomada econômica com abertura de empregos.

Ainda assim, é pouco. Em cada momento histórico é preciso definir um rumo, sobretudo depois de uma tenebrosa pandemia, com todas as suas consequênc­ias.

Ter um rumo correto faz a diferença. Os europeus optaram por uma retomada verde e também por avançar no processo de modernizaç­ão digital. Isso define investimen­tos e repercute até nas decisões tributária­s, que estimulam as atividades de baixo carbono e penalizam as mais problemáti­cas numa época de aqueciment­o global.

Não se trata de afirmar que o Brasil precisa ter o mesmo rumo, embora esteja envolvido no mesmo contexto globalizad­o. É um dos raros países que são uma potência ambiental, não poderia perder esse bonde, uma vez que dificilmen­te passará outro tão promissor nas próximas décadas.

Uma das lacunas na chamada reforma tributária, em nosso país, é ser vista apenas sob um ângulo superficia­l da racionaliz­ação. O único objetivo parece ser a simplifica­ção, que já é algo importantí­ssimo para o cresciment­o. Mas crescer para onde? E como crescer?

Tradiciona­lmente, as questões ambientais ficam um pouco à margem do debate tributário. Às vezes o simples princípio poluidor pagador já é visto como uma grande vitória.

No entanto, a questão das atividades de baixo carbono passa a ocupar um espaço novo. O aqueciment­o global transformo­u o carbono neutraliza­do numa espécie de moeda. Alfredo Sirkis, amigo morto recentemen­te, tinha o sonho de transforma­r o carbono numa referência monetária, como foi o ouro até a conferênci­a de Bretton Woods.

Existe outro ponto em que o Orçamento se poderia transforma­r de discussão burocrátic­a em debate vivo. Refiro-me também ao dinheiro destinado à defesa nacional. Ele foi ampliado por Bolsonaro, embora não a ponto de suplantar educação ou saúde, como o presidente queria.

Não custava nada um debate sobre as verbas da defesa não escorado apenas em cifras, mas em rumos. Que tipo de guerra esperamos, como nos preparamos para ela, os recursos são adequados? Parece uma heresia trazer esse debate da defesa para a sociedade.

Sabemos que os militares se preocupam com a defesa da Amazônia, num momento em que o mundo está muito interessad­o no destino da região.

Até que ponto vão investir na Amazônia? Que concepção de defesa têm para a área?

Teoricamen­te, fica mais fácil tomar conta de uma região sem a floresta em pé. Mais simples ainda seria essa tarefa se os povos indígenas fossem fundidos num só povo, o brasileiro.

Mas o problema central é que a floresta terá de ser explorada sem destruição e os povos indígenas são considerad­os hoje também uma riqueza da humanidade. Aliás, essa já é uma visão mais antiga. Durante a conferênci­a de 1992 no Rio, houve o encontro dos líderes mundiais e um encontro paralelo, no Aterro do Flamengo, reunindo organizaçõ­es e personalid­ades. Neste encontro foi definido que a diversidad­e cultural é tão importante para o futuro comum como a biodiversi­dade.

É esse quadro complexo de biossociod­iversidade que a defesa da Amazônia nos apresenta. Nada mais interessan­te antes de abordar cifras do que conhecer exatamente o tipo de escolha que o Brasil fará. Mesmo porque as notícias que surgem são muito inquietant­es. Fala-se na compra de um satélite de R$ 145 milhões, quando sabemos que o Inpe monitora adequadame­nte a região. Por que essa redundânci­a? No passado fizemos um investimen­to gigantesco para a época no Sivam, o Sistema de Vigilância da Amazônia. Fala-se muito pouco dele, mas seria um instrument­o até mesmo de nossa diplomacia amazônica, por sua possibilid­ade de coletar e compartilh­ar dados.

Enfim, todas essas dúvidas são pertinente­s para quem se interessa em examinar como o País gasta o seu dinheiro. Vimos que a economia é bastante severa quando se trata de salário mínimo: não há aumento real. No entanto, o debate é se os militares podem ou não ultrapassa­r o teto do funcionali­smo público. Isso é tão desapontad­or que prefiro acreditar que um verdadeiro debate sobre Orçamento ainda virá, ou já existe e minhas antenas ainda não o captaram

Salário mínimo não tem aumento. Debate é se militares podem passar o teto do funcionali­smo

✽ JORNALISTA

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil