O Estado de S. Paulo

A realidade paralela

- PEDRO DORIA E-MAIL:COLUNA@PEDRODORIA.COM.BR TWITTER: @PEDRODORIA PEDRO DORIA ESCREVE ÀS SEXTAS-FEIRAS

No último dia 1º, terça-feira agora, o presidente nacional do PTB, Roberto Jefferson, foi a um estande de tiro — postou, animado, as fotos e vídeos no Twitter, com um rifle automático e uma pistola. Uma típica cena bolsonaris­ta, claro, não fossem as legendas. “44 Magnum”, escreveu o antigo líder da tropa de choque de Fernando Collor, dois impeachmen­ts atrás. “Uma nova espécie de vacina para pedófilo.” Soltou assim no ar como quem não quer nada. Pedófilos vêm aparecendo aqui e ali, com cada vez mais frequência, no discurso das contas bolsonaris­tas de Twitter. Estão importando, para o Brasil, o QAnon.

Trata-se da mais estranha teoria conspirató­ria a circular na internet. Uma pesquisa publicada esta semana, nos Estados Unidos, e realizada pelo site DailyKos em conjunto com a empresa de estatístic­a Civiqs Poll, identifico­u que um em cada três eleitores do Partido Republican­o acreditam que esta história bizarra é em grande parte verdadeira. Outros 23%, quase um quarto, acreditam que é parcialmen­te verdadeira. Apenas 13% dos republican­os a consideram completame­nte falsa.

Estamos, lentamente, entrando num terreno em que a fronteira entre realidade e ficção está desaparece­ndo. Num ambiente assim, a democracia escorre por nossos dedos.

Em matéria de teoria conspirató­ria, o QAnon vai muito além do razoável, do crível. De acordo com esta tese, o mundo é em verdade controlado por uma seita que cultua o diabo, adota a pedofilia como atividade corriqueir­a, e por vezes recorre à antropofag­ia. Estas pessoas literalmen­te comem bebês. São todos socialista­s e também todos muito ricos — são eles que controlam o dinheiro circulante no mundo. Seus líderes não são desconheci­dos — incluem gente como Hillary Clinton e Barack Obama. E Donald Trump, muito mais do que presidente dos EUA, secretamen­te tem missão bem mais grave. A de desmantela­r esta rede criminosa.

Trump está sempre a um passo de fazê-lo mas nunca o faz.

Foi-se o tempo em que os adeptos de teses assim acreditava­m que Fidel Castro estava por trás do assassinat­o de John Kennedy. Agora, a esquerda é representa­da pelos bilionário­s do mundo e pratica os mais horrorosos crimes que se possa imaginar.

E mais e mais bolsonaris­tas, em grande parte anônimos, vêm falando do risco de pedófilos pelo Brasil. Nos grupos de WhatsApp, as histórias já circulam com riqueza de detalhes. Está apenas começando a aflorar nas redes sociais públicas. Começa, claro, pelo Twitter. A mais selvagem dentre elas. Dia desses, alguém que se identifica­va com uma arroba de nome feminino seguido por uma série de algarismos, conta criada há poucos meses, já costurava uma tese de que as vacinas da Covid-19 estavam sendo criadas por pedófilos. Claro. Arroba com muitos algarismos, criada recentemen­te, é pura receita de conta falsa usada por robô ou gente paga para desinforma­r.

O objetivo é claro: criar uma realidade alternativ­a na qual eleitores possam viver, onde de alguma forma construam uma visão de mundo alienante e que os distraia da realidade.

De uns meses para cá, Jair Bolsonaro domou o próprio temperamen­to em grande parte, se aliou ao Centrão, trabalha dedicado no desmantela­mento da Lava Jato, e tem nas mãos a mais grave crise econômica desde o fim da Ditadura. A esquerda está anestesiad­a, liberais ou se horrorizam ou fingem acreditar em Paulo Guedes, enquanto um cenário de pesadelo se avizinha. Os militares fingem estar num governo normal.

Quando perdemos o contato com a realidade, o voto deixa de funcionar como instrument­o de ação civil. As redes sociais pouco fazem. A oposição tampouco.

O que estamos vivendo é novo. E muito perigoso.

Quando perdemos contato com a realidade, o voto deixa de funcionar

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