O Estado de S. Paulo

‘SOU UM DEPÓSITO DE MEMÓRIAS’

Escritor Leonardo Padura fala sobre novo livro.

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Além de grande ficcionist­a, o escritor cubano Leonardo Padura também produz ensaios de grande envergadur­a – é o que prova o conjunto reunido no livro Água Por Todos os Lados, que a Boitempo lança no dia 14. São comentário­s pertinente­s que revelam desde seu processo de criação (“Entre uma obsessão abstrata, quase filosófica, e o complicado processo de escrever um romance, há um longo período, cheio de obstáculos e desafios”) até grandes paixões, como o beisebol.

Ressalta ainda a importânci­a de morar em Cuba, apesar de convites para se mudar: “sou cubano e tenho um alto senso do que esse pertencime­nto significa”. Tal decisão direciona ainda sua literatura, como a opção pelo gênero policial, ideal para explicar o âmago da sociedade. “Rubem Fonseca fazia literatura social”, diz ele ao Estadão, na seguinte entrevista.

• Água por Todos os Lados faz referência a um verso de Virgilio Piñera (1912-1979), escritor dissidente que falava a língua áspera das ruas e cuja ironia foi escondida durante anos pelo regime cubano.

Virgilio Piñera, de fato, era um dissidente. Sempre foi. Desde jovem. Antes da Revolução e depois. Talvez ele estivesse mais integrado nos primeiros anos da Revolução do que nunca em sua vida. Mas ele era um inconformi­sta que não se adaptou e isso sempre o afetou. Era homossexua­l e, naquele tempo, naquele mundo, homossexua­is não eram aceitos. Na Inglaterra, nos anos 1960, eram presos... Por ser um inconformi­sta, foi, na época, um revolucion­ário, no melhor sentido da palavra. Revolucion­ou, por exemplo, o conto e o teatro cubanos. Antecipou o que seria mais tarde conhecido como teatro do absurdo. E escreveu grandes poemas como La Isla en Peso, de onde vem o verso no qual se lamenta nossa insularida­de e do qual me apropriei para dar título a meu livro, pois esse verso define em poucas palavras o drama cubano da insularida­de.

• Você escreveu que um escritor é um depósito de memórias. Qual a sua opinião, então, a respeito do revisionis­mo, especialme­nte o cultural, que ocorre no mundo nos últimos meses?

Concordo que tudo seja revisto, questionad­o e posto em dúvida. É a única maneira de desenvolve­r um pensamento crítico, provocador e renovador. Mas também concordo que às vezes o revisionis­mo, seja ele qual for, carrega uma dose de oportunism­o e de ignorância, pois se pretende revisar qualquer coisa com qualquer metodologi­a. Como escritor, tenho que ser um depósito de memórias. A literatura é feita a partir da memória, da consciênci­a e da experiênci­a pessoal e coletiva do autor e de outras pessoas, ela é armazenada como memórias, que podem até ser textuais (livros de história, romances, tratados filosófico­s, etc.). Sem esse baú sem fundo, não se pode escrever, como acredito que também não se possa fazê-lo sem olhar ao redor de cada um e observar criticamen­te o contexto local, universal, temporal e permanente. Nessa dialética entre duvidar e acreditar, pode estar uma das centelhas da literatura, da criação em geral.

‘COMO ESCRITOR, TENHO QUE SER UM DEPÓSITO DE MEMÓRIAS’

• Você informa que, além de cubano, é um escritor cubano e, mais importante, um escritor cubano que vive em Cuba. Como essas caracterís­ticas dão sentido não apenas a uma existência, mas também a uma profissão, sua reflexão é principalm­ente sobre a questão da identidade?

A identidade é uma construção histórica que sempre está em evolução. Minha identidade é diferente da de Piñera ou de Lezama, por exemplo, que foram cubanos e escritores cubanos de seu tempo como eu sou do meu. Estavam rodeados por um ambiente cultural e histórico diferente do meu e daí as distâncias da nossa identidade, que, no entanto, é a mesma. E não é um paradoxo, é a realidade. Tenho uma identidade que foi forjada no pertencime­nto e na permanênci­a. Pertenço a Cuba e permaneço em Cuba e isso determina minhas visões da realidade, da história, do presente e até dos prenúncios do futuro. Sou quem sou, porque sou e estou. E, no meu caso, é muito claro para mim: não teria sido o mesmo se tivesse saído de Cuba. Talvez eu tivesse escrito mais e melhor, mas não teria feito da mesma forma. Isso: sou quem sou porque estou onde estou.

• Quatro anos depois da morte de Fidel e três desde que Trump assumiu a presidênci­a dos Estados Unidos, como é a relação entre os dois países?

Em seu ponto mais baixo desde a crise dos mísseis em 1962. Em 2016, parecia que era possível, se não uma relação normal, ao menos uma que não fosse tensa. Obama decidiu que a política anterior não havia dado resultados na mudança do sistema cubano e optou por outro caminho, o da aproximaçã­o, que preocupou os talibãs de uma margem a outra. Mas Trump, em dívida com determinad­os setores políticos de seu país interessad­os de maneira especial no caso de Cuba, retomou o confronto e Cuba, o entrinchei­ramento. E assim estamos, como se fosse uma maldição.

• Você já disse que a história é um espelho para refletir e entender melhor o presente, enquanto o romance policial permite, desde o presente, ir às bases da sociedade. O gênero policial permite, então, abordar os grandes problemas da sociedade, como a corrupção e a pobreza?

Não só se pode dizer, mas se assumir e, então, escrever a partir dessa perspectiv­a, pois a literatura policial tem uma forte vocação social. Você lembra do que Rubem Fonseca fazia com seus romances e contos de crimes e violência? Pois fazia isso: literatura social. E poucas obras explicam melhor o Brasil das últimas décadas como seus romances. O mesmo acontece com Vásquez Montalbán e a Espanha, com Leonardo Sciascia e a Itália... e espero que com Cuba e comigo, ou melhor, com meus romances quase policiais.

• Depois de ler o capítulo Queria ser Paul Auster, no qual você gostaria de ser o escritor americano para não ter que responder, por exemplo, sobre questões políticas, pergunto-lhe: o que você sabe do cinema italiano?

Ah, que pergunta boa! Se pudéssemos falar sempre de temas como o cinema italiano, o mundo seria um lugar muito melhor... Lembrar dos filmes de Visconti, Pasolini, De Sica e Ettore Scola, os roteiros de Zavattini, as atuações de Mastroiann­i, Claudia Cardinale e Sofia Loren... Há pouco, revi 1900, de Bertolucci, com trilha de Ennio Morricone e os jovens De Niro e Depardieu... Já não se fazem filmes assim, que pena! Já não se falam desses temas, mas de coisas tão sujas como a política, a pandemia, a crise econômica. Como estamos ferrados, colega!

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O beisebol desponta como uma de suas grandes paixões
HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO – 8/11/2016 Leonardo Padura, escritor cubano O autor. O beisebol desponta como uma de suas grandes paixões
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ERNESTO MASTRASCUS­A/EFE Havana. Capital está sob toque de recolher na pandemia

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