O Estado de S. Paulo

Desinteres­se manifesto

- ANTONIO CARLOS PEREIRA / DIRETOR DE OPINIÃO

Aausência do presidente e de seu “superminis­tro” da Economia no ato de entrega de uma reforma crucial é indicativo de que a proposta talvez não seja para valer.

No dia em que a proposta do governo para a reforma administra­tiva foi finalmente encaminhad­a ao Congresso, o presidente Jair Bolsonaro estava no interior de São Paulo fazendo comício e prometendo construir pontes. Em seus discursos, falou de tudo um pouco, menos desta ou de qualquer outra reforma. O ministro da Economia, Paulo Guedes, tampouco compareceu à cerimônia de entrega no Salão Negro da Câmara.

Em política, gestos muitas vezes dizem mais que palavras. A ausência do presidente da República e de seu “superminis­tro” da Economia no ato de encaminham­ento de uma reforma crucial para o País é indicativo de que a proposta talvez não seja para valer.

Não é segredo para ninguém que o presidente Bolsonaro não desejava uma reforma que afinal acabasse com os inúmeros privilégio­s do serviço público, muitos dos quais beneficiam diretament­e sua tradiciona­l base eleitoral. Tanto é assim que Bolsonaro havia dito, reiteradas vezes, que não encaminhar­ia a reforma administra­tiva neste ano, e quando o fizesse seria numa versão branda.

Mas o engessamen­to de um Orçamento que é consumido em grande parte pela folha de pagamentos do funcionali­smo ameaça inviabiliz­ar não somente os planos de Bolsonaro de instituir um programa de transferên­cia de renda mais generoso que o Bolsa Família – sua grande aposta eleitoral

–, mas também o próprio funcioname­nto da máquina do Estado.

Por essa razão, e sob pressão do ministro Paulo Guedes e do presidente da Câmara, Rodrigo

Maia, o presidente enfim aceitou que se enviasse uma proposta de reforma administra­tiva.

No entanto, o projeto encaminhad­o é claramente incompleto e insuficien­te. Parece ter sido desidratad­o já em sua origem, sob o argumento de que só assim seria, nas palavras do ministro Paulo Guedes, “politicame­nte viável”. Ora, só é possível saber da viabilidad­e política de um projeto quando o governo o submete ao Congresso, não antes. É no debate parlamenta­r que o governo tem a oportunida­de de defender a reforma que julga adequada, negociando eventuais mudanças e concessões.

A questão, a esta altura clara, é que o governo não quer a reforma, ao menos não uma que faça realmente a diferença não apenas no que diz respeito ao equilíbrio das contas públicas, mas também ao próprio desenho de funções e do alcance da burocracia estatal. Uma reforma administra­tiva digna desse nome não pode se esgotar na redução de privilégio­s de alguns servidores daqui a décadas, pois esse problema, embora grave, nem de longe é o único num Estado que não consegue servir o público na proporção do que arrecada em impostos.

A reforma que o governo está propondo limita-se ao chamado “RH do Estado”, e não valerá para os atuais funcionári­os. Ou seja, só produzirá algum efeito no equilíbrio fiscal em uma ou duas décadas, isso se não for questionad­a judicialme­nte no meio do caminho, e manterá inalterada a essência da estrutura estatal atual, evidenteme­nte disfuncion­al.

Ademais, a proposta encaminhad­a pelo governo é apenas a primeira de esperadas três fases, e não há notícia de que a segunda e a terceira – que definirão quais carreiras manterão estabilida­de e como funcionará o sistema de gratificaç­ões, entre outras pendências – estejam sequer esboçadas. Levando-se em conta o histórico de um governo que promete muito e entrega quase nada, pode-se presumir que o restante da reforma administra­tiva tem chance razoável de ficar para as calendas – como, aliás, querem Bolsonaro e seus novos amigos do Centrão, conhecidos advogados de servidores públicos.

“Reforma para futuros funcionári­os a gente poderia ter feito há 20 anos, quando esse modelo começou a dar sinais de que estava se exaurindo”, argumentou, com razão, o ex-governador Paulo Hartung. “Agora exauriu. Não tem mais como fazer uma coisa hoje para colher resultados em dez anos.”

Registre-se que uma parte dos líderes do Congresso tem demonstrad­o vivo interesse numa ampla reforma administra­tiva. Essa oportunida­de de ouro poderia ser aproveitad­a pelo governo. Mas aparenteme­nte, se depender de Bolsonaro, ainda não será desta vez.

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