O Estado de S. Paulo

Calmas conversas em torno do quente chá

- JOÃO GABRIEL DE LIMA E-MAIL: JOAOGABRIE­LSANTANADE­LIMA@GMAIL.COM TWITTER: @JOAOGABRIE­LDELI JOÃO GABRIEL DE LIMA ESCREVE AOS SÁBADOS

Oque é o que é. Os tucanos criaram, os petistas aperfeiçoa­ram, Temer não mexeu e Bolsonaro quer rebatizar. A resposta é fácil: o Bolsa Família, unanimidad­e nacional. O programa que destina dinheiro aos brasileiro­s mais vulnerávei­s é aprovado por direitas e esquerdas, socialista­s e conservado­res, desenvolvi­mentistas e social-democratas, liberais de Chicago que trabalhara­m em governos petistas (Ricardo Paes de Barros) e liberais de Chicago alinhados com Bolsonaro (Paulo Guedes).

Garantir uma renda mínima aos mais pobres é prioridade no Brasil, assim como um sistema de saúde abrangente e gratuito é algo fundamenta­l para os britânicos. São escolhas das respectiva­s sociedades, cristaliza­das em políticas públicas. Aqui como lá, não é fácil garantir tais benefícios em momentos de restrição orçamentár­ia. Um caso recente da Inglaterra pode inspirar o momento que vivemos no Brasil.

Em 2008, o sistema financeiro mundial derreteu com a crise das hipotecas nos Estados Unidos. Nos anos seguintes, os ingleses tiveram de passar por um ajuste fiscal. Foi uma experiênci­a traumática – sempre é –, mas o ajuste inglês acabou aprovado pela maioria da população. Perderam-se alguns anéis, preservara­m-se os dedos: o sistema público de saúde foi mantido. Anos mais tarde, ele seria fundamenta­l no combate à pandemia, além de salvar a vida do primeiro-ministro Boris Johnson.

Vivemos no Brasil um momento parecido. A restrição: a derrocada econômica provocada pelo coronavíru­s. O objetivo: preservar os benefícios sociais dos mais vulnerávei­s. A oportunida­de: as reformas administra­tiva e tributária que estão em pauta.

Podemos fazer tudo errado, e cair na briga estéril de sempre. Um lado dirá que a culpa por todos os nossos males é dos funcionári­os públicos. Outro retrucará defendendo que não há crise fiscal, é só cobrar imposto dos mais ricos. Muito rancor, poucos fatos – e mais uma vez não sairemos do lugar.

Ou podemos, em vez disso, baixar a bola, tomar um “quente chá”, como os ingleses de anedota dos quadrinhos de Asterix, e seguir algumas lições vindas de Londres (estudos sobre o caso britânico, fornecidos pela economista Ana Carla Abrão, colunista do Estadão, estão na versão digital da coluna).

Primeira lição: estabeleça quanto se pode gastar sem compromete­r as finanças do país. Segunda: crie uma agenda positiva e crível. O então primeiro-ministro, David Cameron, não foi ao Parlamento pedir corte de gastos puro e simples. Levou, em vez disso, uma proposta detalhada de melhoria do serviço público, com uso massivo de tecnologia. Terceira: seja transparen­te com a sociedade e a imprensa – comunicaçã­o é chave.

E, talvez, o mais importante: nunca derrube o nível do debate. Democracia­s saudáveis pressupõem direitas e esquerdas fortes. É preciso que umas ouçam o que as outras têm a dizer. É fato que o Brasil é um dos países emergentes que mais gastam com funcionali­smo, e as mudanças terão de passar por aí. É fato também que nossa tributação é injusta, e precisamos mudar essa realidade.

Os debates sobre as reformas administra­tiva e tributária serão duros, assim como a discussão sobre a reforma do serviço público foi difícil em Londres – nem por lá tudo se resolve com calmas conversas em torno do quente chá. Buscar um debate sereno, no entanto, vale a pena. É ele que alimenta as democracia­s – e, aqui como na Inglaterra, viabiliza as escolhas da sociedade.

Em vez de cair na briga estéril de sempre, podemos seguir lições vindas de Londres

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil