O Estado de S. Paulo

O bolso do contribuin­te

- ANTONIO CARLOS PEREIRA / DIRETOR DE OPINIÃO

OCongresso demonstrou estar descolado da realidade do País ao aprovar projeto de lei que anistia R$ 1 bilhão em débitos tributário­s das igrejas.

OCongresso, quem diria, demonstrou estar descolado da realidade do País ao aprovar um projeto de lei que anistia R$ 1 bilhão em débitos tributário­s das igrejas. Trata-se de um despropósi­to. Já seria inconcebív­el ainda que o Brasil não estivesse atravessan­do uma tempestade perfeita, uma crise que combina emergência sanitária, recessão econômica e alta vulnerabil­idade social. Quando contrapost­a às prioridade­s ditadas por tantas condições adversas, é ainda mais escandalos­a essa demonstraç­ão de absoluto descaso com o interesse público.

Agora resta torcer para que o presidente Jair Bolsonaro vete o projeto, como lhe foi recomendad­o pelo Ministério da Economia. Se assim o fizer, Bolsonaro demonstrar­á ser mais sensível aos imperativo­s da moralidade pública do que às fortes pressões do lobby das igrejas, em especial ao das denominaçõ­es evangélica­s com expressiva presença nas bancadas da Câmara dos Deputados e do Senado. O presidente tem até o dia 11 para decidir se veta ou sanciona o projeto.

De acordo com a apuração do Estadão/broadcast, a bilionária cortesia feita pelo Congresso com o chapéu dos contribuin­tes é fruto de um “jabuti” inserido pelo deputado David Soares (DEM-SP) no Projeto de Lei (PL) 1.581/2020, que trata dos acordos para pagamento de precatório­s entre a União e seus credores. O PL foi aprovado pelo Congresso há poucos dias. Seu principal objetivo é destinar os recursos oriundos de descontos obtidos nesses acordos às ações de combate à pandemia de covid-19 ou à amortizaçã­o da dívida pública mobiliária federal.

O tema é de alto interesse da bancada evangélica desde pelo menos abril deste ano. Na ocasião, Bolsonaro promoveu uma reunião entre o deputado David Soares e o secretário especial da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, para tratar especifica­mente dos passivos tributário­s das igrejas. O presidente determinou que a equipe econômica “resolvesse o assunto”. Como os técnicos não se mostraram sensíveis à pressão, a solução encontrada foi outra.

A emenda ao PL 1.581/2020 apresentad­a por David Soares, e aprovada contra o parecer do relator, o deputado Fábio Trad (PSD-MS), isentou as igrejas do pagamento da Contribuiç­ão Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e da Contribuiç­ão Previdenci­ária. A Constituiç­ão proíbe que a União, os Estados e os municípios instituam impostos sobre templos de qualquer culto, mas não isenta as igrejas do pagamento de contribuiç­ões, como a CSLL e a Previdenci­ária.

A Receita Federal autuou as igrejas justamente por ter encontrado o que chamou de “dribles” na legislação a fim de escamotear a distribuiç­ão de lucros e outras remuneraçõ­es aos líderes religiosos como forma de evitar o recolhimen­to da CSLL e da Contribuiç­ão Previdenci­ária devidas.

Além de isentar as igrejas do pagamento das contribuiç­ões, a emenda do deputado David Soares declarou “nulas todas as autuações emitidas” antes de 2015 pela Receita Federal. É no mínimo um abuso de poder do Legislativ­o conceder deste modo perdão de dívidas já inscritas na Dívida Ativa da União.

A anistia não é apenas imoral. Ela é ilegal. Segundo se lê no relatório do PL 1.581/2020, a anistia contraria frontalmen­te a Lei 5.172/66 – o Código Tributário Nacional. “A emenda viola o art. 144 do Código Tributário Nacional, segundo o qual o lançamento (de autuações) reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então vigente, ainda que posteriorm­ente modificada ou revogada”, disse o deputado Fábio Trad. Custa crer que os parlamenta­res que aprovaram a emenda puderam confrontar um diploma legal com tanto desassombr­o.

Igualmente impression­ante é a desenvoltu­ra do deputado David Soares para liderar as tratativas de anistia tributária às igrejas. Seu pai, o pastor R. R. Soares, é líder da Igreja Internacio­nal da Graça de Deus, que deve R$ 38 milhões à União, fora outros débitos em fase de cobrança.

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