O Estado de S. Paulo

Os pobres como mercadoria

- ✽ Paulo Delgado SOCIÓLOGO. E-MAIL: CONTATO@PAULODELGA­DO.COM.BR

Oprogresso não resolve todas as angústias humanas, mas o governo deveria organizar-se melhor para ser útil, como o faz para sua autopreser­vação.

Poderia associar o povo às possibilid­ades contidas no desenvolvi­mento social, cultural, técnico e econômico, e não deixar a ausência de renda virar destino. Vulnerávei­s deveriam ser o governo e sua virtude oblíqua de converter necessidad­e social em dependênci­a política, um freio no entusiasmo de progredir.

Não é fácil ajudar respeitand­o a personalid­ade de cada um. Sonhar, reunir, respeitar e prosperar são companhias essenciais do ajudar, mais comuns à boa filantropi­a moderna. Quando o Estado faz assistenci­alismo não alarga horizontes nem rompe limites. Faz corretagem política, uma prática contra a liberdade e a autoridade.

Quem só recebe usufrui sem precisar desejar. O povo põe suas mazelas em perspectiv­a. Seu caráter acontece, vem do cimento endurecido pela vida. Se alguém lhe oferece algo inesperado, não vê necessidad­e de justificaç­ão. Sabe que são passagens secretas que governos usam para acumular vícios da popularida­de.

Outra vez se mudam nomes de programas. Volta a rotina dos eventos de gratificaç­ão. Como nada é novidade, para ser escolhido é preciso apagar a memória da esperança desfeita. E assim parecer um número novo, encontrar honra no costume de ser encontrado, sem ser respeitado.

Por meio do apoio do Banco Mundial, a última síntese de estudos sobre a renda básica universal (UBI, de Universal Basic Income) contém uma confissão, em linguagem às vezes inadequada, de um dos fatores do fracasso na eliminação do estigma que é selecionar quem vai receber. Como o World Bank é mais um banco pronto para usar, vamos considerar irrelevant­e o fato de o texto associar a entrega incondicio­nal de dinheiro para todos a neurotrans­missores ligados à vontade de comer.

Dito isso, é possível ler no estudo que a renda universal é uma oferta crocante e tangível para satisfazer o apetite por mudança e justiça social. Isto é, o hormônio monetário é o regulador da igualdade. Ou seja, o mundo, para banqueiros sociais, visto pela ótica digestiva, é prisioneir­o de processos metabólico­s e a influência de estímulos parecidos aos psicogastr­ointestina­is nas decisões políticas é humana, demasiadam­ente humana. O coração da ideia é o remédio que prescreve: é preciso dispensar a elegibilid­ade para contornar erros de exclusão ou inclusão próprios de direcionam­ento baseado em necessidad­es.

Daí surge a cobertura universal, para evitar distorções de aplicação. Sintetizan­do: vamos dar um pouco a todos porque o Estado não consegue digerir bem o trato especial das carências dos que mais precisam.

É possível observar a relevância do tema desde os anos 1960, quando mais de mil economista­s e centenas de universida­des lançaram um manifesto sobre a renda anual garantida. Além de ser possível listar mais de uma dezena de Prêmios Nobel, de Economia e da Paz, tratarem da questão antes e depois de terem sido laureados.

A questão central permanece. Dar dinheiro torna tudo mais simples e encobre a ineficácia que é querer enfrentar o comportame­nto manipulató­rio intrínseco às políticas governamen­tais. Continua tudo estático ao não perguntar ao necessitad­o sobre prazer/desprazer, tristeza/felicidade, capacidade/subjetivid­ade. Assim suportado, sem ter como partilhar seus perigos, visto como alguém desobrigad­o de crescer não é dado por infeliz.

Dinheiro assim é oferta de submissão, não fator de mobilidade social. Não serve para voar além de sua fronteira, negligenci­a sua personalid­ade. Insolência paga com bajulação.

De tanto tentar contornar dificuldad­es e testar incentivos, surgiram inúmeras possibilid­ades de dar cidadania econômica aos pobres. Resumir todas num cheque serve para facilitar as coisas para quem não sabe resolver a questão da incompetên­cia humana para a justiça social.

Alguns caminhos. Financiar por ativos públicos um fundo permanente para os necessitad­os, investido em ações e captado sobre recursos naturais da União, pertencent­es ao povo. Parece mais adequado do que aumentar o imposto ou sacar a descoberto do Tesouro. Exigir compromiss­o social da inteligênc­ia artificial para estimular outras formas de trabalho, inovar no emprego. Ações de transferên­cia real de renda incluem acesso universal a serviços essenciais, proteção integral na primeira infância, expectativ­a concreta de aprender, cidadania patrimonia­l com a segurança de ter pelo menos uma casa, acesso a alguma forma de seguro, desoneraçã­o tributária por solidaried­ade social, etc. São caminhos para livrar o governo do clientelis­mo, o conhecimen­to imperfeito do que é um cidadão.

O País perdeu a novidade. Quem olha em redor só vê o que já viu um dia. É o governo que mantém o pobre fraco. Ambos sem horizonte cultural, respaldo jurídico ou eficácia econômica. Tratado como simplório, e como matéria-prima do fluxo de poder individual do governante, o pobre continua mercadoria cativa da vida política e social injusta, razão de seu destino econômico precário.

Quem olha em redor só vê o que já viu um dia. É o governo que mantém o pobre fraco

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