O Estado de S. Paulo

Olhando a banda passar

- VERA MAGALHÃES E-MAIL: VERA.MAGALHAES@ESTADAO.COM TWITTER: @VERAMAGALH­AES POLITICA.ESTADAO.COM.BR/COLUNAS/VERA-MAGALHAES/

Já são mais de 127 mil os brasileiro­s mortos pela covid-19. Diante desse número, assim como dos que o antecedera­m, Jair Bolsonaro segue em sua jornada negacionis­ta. O mais recente ataque ao bom senso se dá em declaraçõe­s diárias semeando desconfian­ça na população quanto à necessidad­e e a segurança da vacinação em massa.

Enquanto isso, num planeta muito distante em que vive uma parcela da esquerda brasileira, a discussão do momento se dá entre os que defendem que o stalinismo nem foi tão nefasto assim e os que lembram o genocídio promovido por Stalin na União Soviética no século passado.

A banda de Bolsonaro passa na janela e nossa gente sofrida para tudo para discutir o passado distante.

Isso não é um fenômeno isolado, um lapso de um feriado prolongado. Tem sido uma constante desde antes da eleição do capitão e segue de forma sistemátic­a e espantosa a cada avanço do presidente contra as liberdades, a ciência, o bom senso, as instituiçõ­es e o que mais ele tiver pela frente para destruir.

E agora, quando ele se recupera nas pesquisas, ou lá na frente, quando e se chegar competitiv­o a 2022, a “culpa” certamente terá sido da imprensa, que “normalizou” (bocejos) Bolsonaro, e não dos adversário­s que não entenderam absolutame­nte nada do modus operandi do bolsonaris­mo.

A imprensa sempre denunciou que Bolsonaro era misógino, machista, homofóbico, que louvava a ditadura e aplaudia a tortura. Fez isso de forma repetitiva na campanha. E as pessoas votaram em Bolsonaro apesar ou até por causa disso, a verdade é essa.

A imprensa denuncia os abusos de Bolsonaro diariament­e. É vítima preferenci­al deles. E a banda segue, cantando coisas de amor e fazendo populismo fiscal e político.

Não existe nenhuma organizaçã­o, da centro direita à esquerda, para desmontar o discurso de Bolsonaro, oferecer alternativ­as a ele e, principalm­ente, responsabi­lizá-lo pela forma como sabota o enfrentame­nto da pandemia no Brasil.

Agora são os stalinista­s do Twitter, mas já tivemos dezenas de discussões igualmente estéreis, que servem para distrair as Carolinas na janela enquanto o tempo e a banda passam.

E parcela consideráv­el da chamada intelligen­tsia brasileira contribui para a distração. Há algumas semanas, uma intelectua­l brasileira cuja obra de denúncia do racismo e de defesa da igualdade de raças é incontrove­rsa, Lilia Schwarcz, foi submetida ao tribunal das redes sociais por ter emitido uma opinião crítica a um filme da cantora norte-americana Beyoncé.

Em que isso ajuda na discussão sobre racismo e representa­tividade no Brasil ou, no sentido mais amplo, na articulaçã­o das forças ditas progressis­tas para se contrapor a Bolsonaro e a seu desmonte das políticas de reparação, por exemplo? Em absolutame­nte nada. Mas consumiu horas a fio de algumas das principais vozes da oposição e levou a historiado­ra a ter de se retratar uma, duas, três vezes até receber um desconfiad­o salvo-conduto para poder voltar a falar. Isso é absolutame­nte irrazoável e é a chave da nossa tragédia.

O Pantanal queima há semanas, fornecendo imagens cada vez mais tristes de morte de animais e desespero de populações locais, mas estamos sendo distraídos pelo secretário de Cultura, um dublê de canastrão de seriado adolescent­e dos anos 1990 e bolsominio­n. É uma armadilha à qual todos nós, jornalista­s incluídos, são atraídos diariament­e.

Enquanto as opções forem escolher o genocida mais limpinho, ou entre o pronunciam­ento de Bolsonaro ou Lula no Sete de Setembro, não sairemos da espiral de morte, destruição civilizató­ria e declínio científico, educaciona­l, cultural e econômico em que estamos enfiados. Olhando a banda passar e esquecidos da vida.

Pandemia segue matando, Bolsonaro se recupera, mas tema da esquerda é stalinismo

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