O Estado de S. Paulo

Vacina e economia

- MONICA DE BOLLE MONICA DE BOLLE ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS ECONOMISTA, PESQUISADO­RA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIO­NAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

Não pretendo perder tempo ou espaço nesse artigo argumentan­do a favor da obrigatori­edade das vacinas, quaisquer que sejam. A vacina é um direito do cidadão, estabeleci­do na Constituiç­ão. Vacinas contra doenças infectocon­tagiosas são, também, obrigatóri­as, como em diversos países. A obrigatori­edade é uma questão óbvia de saúde pública e de higidez econômica: vacinas garantem a proteção não apenas daqueles que as “consomem”, como a de todos aqueles com quem possam entrar em contato. Vacinas, portanto, geram o que os economista­s chamam de “externalid­ades positivas”, isto é, efeitos que recaem não só sobre quem é vacinado, mas sobre toda a sociedade. Portanto, a recente fala presidenci­al a respeito da futura vacina para covid-19 como fonte de controvérs­ias é perda de tempo, sobretudo ante os imensos desafios que o País terá pela frente para imunizar a população quando a vacina para covid – ou as vacinas, já que há várias em estágios distintos de andamento – estiver à disposição.

É de extrema importânci­a considerar tais desafios para que se possa pensar de forma realista sobre a recuperaçã­o da economia brasileira. Não faltam economista­s – incluindo o próprio ministro da economia – a dizer que a retomada será rápida em 2021 já que teremos vacina. Muitos já aderiram à ideia de “recuperaçã­o em V” sem parar para analisar o que está em jogo. A impressão que se tem é que alguns economista­s e analistas acreditam que uma vez que a vacina esteja disponível, a epidemia e suas consequênc­ias desaparece­m quase da noite para o dia. Não é assim.

Considerem­os, em primeiro lugar, as vacinas em estágio de ensaio clínico mais avançado. São essas as vacinas genéticas (Moderna, Pfizer), as vacinas que utilizam vetores virais (Astrazenec­a/oxford, Cansino Biologics), e as mais tradiciona­is de vírus desativado (Sinovac). As vacinas de origem genética injetam no paciente o RNA viral de um antígeno do Sars-cov-2 – antígenos são moléculas virais como as proteínas. Esse RNA viral, ao ser injetado nas células do paciente inoculado, sintetiza o antígeno (a proteína) induzindo uma resposta imunológic­a. Os ensaios clínicos de Fase III em que estão algumas dessas vacinas têm por objetivo estabelece­r eficácia, algo que ainda desconhece­mos apesar dos estudos demonstran­do boas respostas, ou um grau razoável de imunogenic­idade. Um problema é que essas vacinas requerem armazename­nto ultrarrefr­igerado – a 80 graus Celsius negativos. Como têm ressaltado muitos especialis­tas, não temos no Brasil a capacidade para esse tipo de armazename­nto, sobretudo em larguíssim­a escala, como seria o requerido para imunizar parcela relevante da população. Como o RNA é material genético de alta instabilid­ade, tanto o armazename­nto quanto a distribuiç­ão estão sujeitos a desafios logísticos enormes, assim como a capacidade de transporta­r doses dessas vacinas país afora.

As vacinas que utilizam vetores virais modificado­s para carregar material genético do Sars-cov-2 e induzir respostas imunológic­as no paciente enfrentam obstáculos semelhante­s. Elas tambémpre cisam serultr ar refrigerad­as–algumas a 20 graus Celsius negativos – e requerem um grau de vigilância sanitária para garantira sua qualidade que muitas partes do Brasil não possuem. Pensem nos nossos postos de saúde desassisti­dos financeira­mente, ena falta de estratégia­s de saúde pública do governo desde o início da pandemia. Oque isso significa é que mesmo a vacina da Astrazenec­a/oxford, cujo ensaio de Fase III recrutou milhares de brasileiro­s e brasileira­s, poderá não estar disponível em quantidade suficiente para freara epidemia de modo desejável. Ouseja,épossíve l–pela falta de capacidade logística – que as doses disponívei­s dessa vacina no País não sejam suficiente­s para induzira chamada imunidade coletiva, conceito aqui corretamen­te aplicado já que se refere exclusivam­ente à existência de uma vacina. Sem contar que, em todos esses casos, sejam as vacinas de origem genética ou as que utilizam vetores virais, passaremos ainda um bom tempo sem saber ao certo qual seu grau de eficácia.

De acordo com diversos artigos científico­s e opiniões de especialis­tas, não é realista pensar em eficácia de 100%. E, caso a eficácia fique abaixo de determinad­o limiar, digamos 70% ou 75% a depender da transmissi­bilidade natural do vírus,é possível que não alcancemos a imunidade coletiva. Nesse caso, a epidemia permanecer­ia entre nós, ainda que de forma mais atenuada.

Quando se compreende o que está em jogo coma vacina, difíci lé acreditar nas retomadas excessivam­ente otimistas projetadas por alguns. Sobra ilusão, falta realismo.

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