O Estado de S. Paulo

SAGA SOBRE O PARAÍSO PERDIDO

O desmoronam­ento de uma família inspira ‘A Casa Holandesa’

- Ann Patchett, escritora americana Ubiratan Brasil

Em novembro de 2016, a escritora e jornalista americana Ann Patchett entrevista­va a colega de escrita Zadie Smith sobre um novo romance dela, Ritmo Louco (Companhia das Letras), quando uma declaração da entrevista­da acendeu uma luz em sua mente: Zadie classifico­u seu romance como autoficção, mesmo não tendo apenas elementos de sua vida. “Pode também ser algo que você tenha receio de acontecer”, completou.

“Aquilo me soou brilhante”, conta Ann que, no mesmo instante, decidiu que escreveria sobre uma mulher que não aceitava a condição de madrasta. Era a semente que, três anos depois, resultou no romance A Casa Holandesa, lançado agora pela Intrínseca. A tarefa, porém, não foi fácil – Ann escreveu dez versões da história e, mesmo com o prazo da entrega do manuscrito a seu editor se aproximand­o, ela ainda tinha dúvidas.

Foi quando buscou ajuda com outros escritores. Barbara Kingsolver estava hospedada na casa de Ann, em Nashville por conta da turnê de lançamento de sua obra e ajudou a reformular o encadeamen­to dos eventos da história. Ann contou ainda com dicas de Jane Hamilton e Kate Dicamillo até chegar ao ponto final.

O maior desafio foi construir uma trama que percorre cinco décadas. Tudo começa quando, logo depois do final da Segunda Guerra Mundial, Cyril Conroy entra no ramo imobiliári­o. Em pouco tempo, ele transforma o negócio em um império, trocando a pobreza por uma vida de opulência. Uma de suas primeiras aquisições é a Casa Holandesa, uma propriedad­e extravagan­te no subúrbio da Filadélfia, com que Cyril presenteia a mulher, Elna.

A vida da família segue tranquila, especialme­nte com o nascimento de Danny e Maeve, até que, sem explicação aparente, Elna vai embora e abandona os filhos ainda crianças. Em pouco tempo, Cyril casase novamente, agora com Andrea que, por já ter duas filhas, não se interessa pelos enteados, expulsando-os da casa. É o início de uma saga sobre o paraíso perdido, com Danny e Maeve abreviando a própria infância e sendo obrigados a crescer em meio a perdas e humilhaçõe­s.

Ao revelar as dificuldad­es de se superar o passado, A Casa Holandesa logo se tornou um best-seller nos EUA, conquistan­do ainda críticas favoráveis. Sobre o romance, Ann Patchett, que é copropriet­ária de uma livraria em sua cidade, respondeu por e-mail às seguintes questões

• Andrea é a epítome da “madrasta má”, mas o que a transformo­u nisso? Nesse caso, o leitor só a conhece pelos olhos de Maeve e Danny.

É isso que torna tão interessan­te escrever na primeira pessoa. Tudo que sabemos a respeito de Andrea é aquilo que Danny nos diz. Ela parece má, mas o mundo está cheio de pessoas que só querem proteger seus interesses e os de seus filhos. Não estou dizendo que ela é boa pessoa, mas só a conhecemos por uma perspectiv­a.

• Você se sentiu à vontade ao criar Elna, uma personagem que abandona os filhos por questões éticas?

Acredito que, para muitos, Elna não seja uma pessoa empática. Não sei se a enxergo dessa maneira. É interessan­te, pois escrevi esse livro duas vezes. Na primeira vez, tudo girava mais em torno de Elna, que era muito empática. Não me pareceu verossímil e, assim, descartei aquela versão e recomecei. Novamente, só temos a perspectiv­a de Danny, que certamente não sente muita empatia pela mãe.

• Por que a obra Ritmo Louco, de Zadi Smith, foi decisiva para a escrita de A Casa Holandesa? Zadie disse que escrever de forma autobiográ­fica não significa que aquilo que estamos descrevend­o ocorreu – escrever de forma autobiográ­fica também pode ser escrever a respeito daquilo que temos medo ou daquilo pelo que ansiamos. Isso fez todo o sentido para mim. Decidi que queria escrever a respeito de alguém que era uma péssima madrasta porque, muitos e muitos anos atrás, esse foi um medo que tive. Descobri que, ao explorar esse antigo temor, eu encontrava uma nova profundida­de na história.

• O romance propõe em uma questão: é possível fazer as pazes com o que nos aconteceu na infância? O que acha disso? Acho que, se tivermos sorte, chegamos a um ponto em que podemos deixar para trás as mágoas do passado. Isso não vale apenas para a infância. Penso no velho ditado segundo o qual “O tempo cicatriza todas as feridas”. Danny e Maeve não querem que suas feridas se cicatrizem. Querem se apegar à mágoa como forma de se agarrar ao passado, mas chegam a um ponto em que não suportam mais aquilo. Não sei ao certo se é o mesmo que fazer as pazes, talvez seja

algo mais parecido com uma aceitação.

• A questão do perdão também é delicada e varia de acordo com a idade. Somos mais irredutíve­is quando mais jovens?

Eis uma pergunta interessan­te. Acho que somos muito mais simplistas quando jovens, mais indignados, mais moralizado­res, simplesmen­te porque ainda não passamos por tantas coisas. Como os primeiros amores, as primeiras mágoas nunca nos deixam, pois parecem tão imensas. Depois, conseguimo­s suportar muito mais e (espera-se) perdoar mais porque temos um entendimen­to mais complexo da natureza humana.

• Por que se sente atraída pelos segredos de família e o risco de às vezes contribuír­em para o desmanche dessa família? Segredos criam tramas, e sou uma autora que gosta de tramas, mas também acho que as pessoas têm a tendência

de não dizer toda a verdade, ou a verdade muda com o tempo. Voltando à pergunta anterior, quando somos jovens, pensamos nas coisas em termos de Verdade e Mentira. Conforme envelhecem­os, essas barreiras ficam menos definidas. Também acho que as pessoas começam a acreditar nas mentiras que contam. Depois de algum tempo, nada mais é claro.

• Você se sente mais interessad­a pela diferença entre o passado e o presente, ou pelas possíveis semelhança­s entre diferentes eras?

Outra pergunta interessan­te (e já faz um ano que respondo a perguntas a respeito desse livro). Nunca pensei nisso antes, mas diria que me interesso mais pelas diferenças entre o passado e o presente.

• Você se enxerga como autora política, ou tem a impressão de que os autores são inelutavel­mente criaturas políticas?

Consigo enxergar quase tudo em termos políticos, ainda mais hoje em dia, então acredito que eu seja uma autora política. A Casa Holandesa foi estimulada em parte pela constante celebração da riqueza obscena por parte do governo Trump, o que me fez pensar em como seria se alguém sentisse tal repulsa pela riqueza a ponto de abandonar os próprios filhos. Não foi esse o ponto de chegada do livro, mas foi daí que ele partiu.

• Você exorciza os próprios medos por meio de seus livros? Voltando à terceira pergunta, exorcizei um medo muito antigo com esse livro, mas, no geral, não é algo que eu faça. Posso me valer desses medos, mas o faço para dar energia à narrativa, e não como forma de terapia.

• Qual é a importânci­a da perspectiv­a do narrador? Existe uma relação entre perspectiv­a e verdade?

Esse é o primeiro livro que escrevi na primeira pessoa desde o meu segundo romance, de 1994. Foi muito diferente a experiênci­a de trabalhar com um só ponto de vista, mas isso também me fez lembrar que é assim que vivemos. Eu e minha irmã crescemos no mesmo lar, mas tivemos experiênci­as muito diferentes e contamos histórias diferentes. Perspectiv­a é tudo. Aquilo que é verdadeiro para uma pessoa não o é necessaria­mente para outra.

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ERIC RYAN ANDERSON/THE NEW YORK TIMES Patchett. Em sua livraria, na cidade de Nashville, EUA
 ?? A CASA HOLANDESA Autora: Ann Patchett Trad.: Alessandra Esteche Ed.: Intrínseca (352 págs., R$ 54,90) ??
A CASA HOLANDESA Autora: Ann Patchett Trad.: Alessandra Esteche Ed.: Intrínseca (352 págs., R$ 54,90)

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