O Estado de S. Paulo

Acabar com a esquerda?

- Roberto Damatta ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Apolarizaç­ão exagerada no Brasil bolsonaris­ta, após – não se deve esquecer – a hegemonia lulista, é um desastre. Se muitos da “direita” querem acabar com a “esquerda” e vice-versa, devo lembrar que não há democracia sem os dois lados.

Os totalitari­smos suprimem oposições enquanto a polaridade garante o equilíbrio instável e humano. Sem contrastes, o mundo não teria sentido. Sou um homem porque não sou um gato; descubro o calor quando encontro o frio. Só vivo numa democracia quando o debate engloba o autoritari­smo que sufoca liberdades.

Estudei uma sociedade tribal onde se dizia que “tudo tem o seu contrário”. Naquele sistema, a paralisaçã­o entre Sol e Lua criou a vida coletiva, o trabalho, gente feia e defeituosa em paralelo a pessoas belas e saudáveis e, para finalizar uma longa lista, os demiurgos inventaram a morte porque sem ela o mundo transborda­ria de gente.

Os antropólog­os da minha tribo chamam tais sistemas de dualistas e um mestre, o famoso Lévi-strauss, desvendou essas organizaçõ­es sociais duais, presentes – como pode facilmente imaginar – em toda parte.

O nosso próprio sistema contempla vários dualismos céu/inferno, Adão/eva, santos/pecadores, Deus/diabo, esquerda/direita... A lista é longa e, quem sabe, infindável, mas foi somente o Ocidente que encarou a dualidade com o desejo de, um dia, finalizá-la. Seja no Juízo Final, seja quando os operários do mundo conseguiss­em se unir, conforme reza um outro texto sacrossant­o!

O nosso próprio corpo serve como exemplo vivo das dualidades, quando focalizamo­s o simbolismo das mãos para ver o primado da mão direita sobre a esquerda em muitos contextos. A própria noção de “direito” como correto, justo e legal, indica tal posicionam­ento cosmológic­o.

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A resposta ao meu título é um sonoro não. Não se trata de acabar com a esquerda que – como nossas mãos – vai estar sempre presente no corpo social e político. Ademais, toda democracia vai exigir uma esquerda que critique, vigie e transforme o sistema estabeleci­do ou a “direita” – os costumes vigentes.

Se um corpo sem um braço é um corpo mutilado, então a questão é estabelece­r quando cada lado tem precedênci­a. Em muitos sistemas sociais e também entre nós usamos a direita nas saudações e juramentos, mas se vamos pregar um prego, ou surpreende­r um adversário, precisamos do nosso lado canhoto.

Seria reacionári­o lembrar que os dois lados são interdepen­dentes e não inimigos?

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Penso que o Brasil experiment­a a ultrapassa­gem de um momento hegemonica­mente esquerdist­a e enfrenta uma etapa na qual se quer mais uma esquerda do que o esquerdism­o. Do mesmo modo e pela mesma lógica, há quem queira a direita e abomine os fascismos. Os “ismos” indicativo­s de inflexão e condenação ideológica são recusados, mas todo democrata deseja os lados em equilíbrio.

Não se pode liquidar o dualismo e a complement­aridade, pois todos entendemos que, se o esquerdism­o atrasa, a esquerda – ao contrário – é essencial para a democracia. Ela é indispensá­vel quando se projeta liquidar privilégio­s, em transporte público, em saúde, segurança e saneamento. Sem um projeto de esquerda, não há educação primária e secundária de qualidade. A transforma­ção do professor primário num agente de mudança para o igualitari­smo é, ao lado de uma distribuiç­ão equitativa de renda, ativo da esquerda.

Pela moeda da interdepen­dência, demanda-se a direita (e o Direito) para harmonizar os pontos conflituos­os do jogo, sem o que a liberdade e a igualdade sucumbem. Na esquerda, não podem haver conchavos que destroem a confiança tanto no Estado quando nas empresas privadas de sucesso. Elos pessoais e hierarquia­s que desmoraliz­am leis, negócios escusos entre empresas e Estado – tudo isso que englobamos no Brasil como “corrupção” – têm que fazer parte da agenda democrátic­a.

A “revolução” não supera, a não ser com muito esforço, os arranjos culturalme­nte legitimado­s e o protagonis­mo do “dar para receber”, que acabam em malas de dinheiro e na destruição dos principais partidos políticos nacionais.

Não é mais possível manter um inferno jurídico para os pobres e os comuns e um purgatório de regalias para os que estavam (e continuam estando) acima da lei. A luta hoje é como controlar o purgatório jurídico fiador da desigualda­de.

Para essa revolução, é preciso uma boa cabeça, pernas firmes e as duas mãos.

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