O Estado de S. Paulo

O NOVO CONSTRANGI­MENTO DA PANDEMIA viagem

Repreender publicamen­te quem viaja ajuda ou atrapalha a conscienti­zação dos turistas?

- Natalie B. Compton TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

A pandemia deu início a uma nova era de constrangi­mento. As pessoas são constrangi­das por usar máscaras e por não as usar; são constrangi­das por não observar o distanciam­ento social; e até por causa do vírus, quando alguém é criticado por contrair o coronavíru­s.

Agora temos o constrangi­mento de viagem (ou travel shaming, em inglês). Antes do coronavíru­s, o turismo era uma moeda social. Perguntáva­mos aos amigos e aos novos conhecidos (lembra de quando era possível conhecer pessoas novas?) onde eles já tinham estado e quais lugares gostariam de visitar. Na época, o único constrangi­mento associado às viagens se referia àqueles de quem se caçoava por não terem viajado o bastante. As pessoas compartilh­avam suas experiênci­as de viagem com orgulho, como medalhas.

Depois que o mundo entrou em quarentena e voos foram cancelados, com aeroportos e fronteiras fechados, o status social do turismo mudou. Viajantes começaram a enfrentar as reações de quem acredita que esses deslocamen­tos durante a pandemia colocam todos em risco.

Diferentem­ente de outras formas de constrangi­mento ligadas ao coronavíru­s, o constrangi­mento do turista não leva ao “cancelamen­to” de ninguém. Ele se manifesta discretame­nte nas mensagens trocadas ou em manifestaç­ões de agressivid­ade passiva nas redes sociais.

Matt Long, que mantém um blog e um podcast de turismo em Upper Marlboro, Maryland, fez várias viagens desde o início do relaxament­o das restrições causadas pelo coronavíru­s nos Estados Unidos.

“Em cada uma, fui alvo de algum tipo de constrangi­mento social”, diz Long.

Sua primeira viagem foi durante o feriado do Memorial Day (31 de maio). Long foi de carro até o Nemacolin Woodlands Resort, propriedad­e de 8 quilômetro­s quadrados em Farmington, Pensilvâni­a, onde passou dois dias. Ainda que todos os comentário­s em suas publicaçõe­s nas redes sociais tenham sido positivos, Long ficou surpreso com as mensagens ressentida­s que recebeu dos amigos.

“Eles disseram: ‘Faz dois meses que não chego nem à calçada, e você aí passeando. Minha filha não pode ir à aula de natação, mas você vai curtir um resort. Não é justo’”, afirma Long.

Mas a maior polêmica começou com sua viagem à Disney World em agosto. Foi uma situação de lazer e trabalho, como esse reconhecid­o fã da Disney relataria em seu blog e podcast.

“Muitos me criticaram dizendo, ‘Não acredito que você está indo para a Flórida bem agora’", diz Long. “Tive parentes lá (na Flórida) que não gostaram do que fiz e não queriam a visita de ninguém de fora do Estado, pois tinham a sensação de estarem literalmen­te lutando por suas vidas, e a última coisa que precisam era de forasteiro­s de outros Estados piorando ainda mais as coisas.”

Foi esse sentimento que levou Lola Méndez, americana de origem uruguaia que escreve a respeito de turismo, a deixar de viajar com o começo da pandemia, a primeira pausa em cinco anos de viagens constantes.

“Eu jamais poderia viver sabendo que alguém adoeceu e morreu por minha causa”, diz. Lola se sentiu frustrada ao ver jornalista­s da área e influencia­dores retomando os deslocamen­tos. Quando alguém pede conselhos de viagem a Lola, ela tenta responder com dicas pessoais, e, em vez disso, envia artigos publicados nesses destinos com citações de moradores locais pedindo aos turistas que não venham.

“Realmente fiquei irritada com isso e fiz comentário­s críticos no Instagram e no Twitter explicando por que considero isso uma irresponsa­bilidade, e tudo aquilo que devemos ter em mente antes de tomar a decisão de viajar a lazer”, diz Lola.

Pouco efeito. A professora de psicologia June Tangney, da Universida­de George Mason, autora de Shame and Guilt (Vergonha e Culpa), diz que é natural o desejo de constrange­r alguém por viajar durante a pandemia. Entretanto, June não acredita que o constrangi­mento do turista tenha o impacto que as pessoas esperam.

“Constrange­r quem não segue as regras ou fazer com que essas pessoas se sintam culpadas é produtivo ou contraprod­ucente? Me parece claro que o resultado é contraprod­ucente”, explica a professora.

Ainda que June diga não haver estudos empíricos a respeito do tema, todos os dados que ela já viu a respeito do constrangi­mento indicam que o resultado é fazer com que as pessoas fiquem defensivas, irritadas, ou joguem a culpa nos outros.

“É natural ficar irritado com as pessoas por causa disso, ficar ressentido e querer que elas se sintam mal com aquilo”, diz June. “Mas usar o constrangi­mento para que se sintam mal não ajuda.”

June diz que há outra forma de influencia­r o comportame­nto de risco de uma pessoa: tente “incentivar as pessoas a pensar no seu impacto para as demais de uma forma que as incentive a ser mais cuidadosas em vez de repreendê-las e esperar que se redimam”, lembrou ela.

O medo da culpa ou da vergonha pode manter algumas pessoas em casa ou fazer com que escondam suas viagens. Mas algumas celebridad­es expõem tudo nas redes sociais.

Foi o caso do rapper Drake, visto em Barbados em julho; do

ator Timothée Chalamet, visto no México em junho; e Kylie Jenner, que publicou fotos de si sem máscara em Paris há alguns dias, mesmo com a proibição a turistas americanos em vigor na União Europeia. E a lista continua.

O constrangi­mento por viajar não funcionou com Long, que não tem vergonha de suas viagens, embora tenha reduzido as publicaçõe­s que faz pelo caminho.

“Reduzi o quanto compartilh­o”, conta ele a respeito da mais recente viagem à Disney World. “Normalment­e, minhas redes são uma avalanche de Mickeys, mas, dessa vez, fui mais contido.”

Depois de voltar da Disney, ele passou duas semanas de quarentena e fez testes para detectar o coronavíru­s. Long acredita que está tomando as precauções adequadas para viajar com segurança e se enxerga como alguém que pode aliviar o constrangi­mento alheio ao normalizar a ideia de viajar novamente.

“Se formos cuidadosos e não expusermos ninguém a um risco desnecessá­rio, pessoalmen­te não vejo problema (em viajar)”, acrescenta Long. “Mas, pelo futuro próximo, acho que esse constrangi­mento de viagem será uma realidade.” /

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Tudo normal? Mar de guarda-sóis na Praia de Ipanema, no Rio, no feriado, mesmo com as restrições sanitárias

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