O Estado de S. Paulo

A REINVENÇÃO DA MÚSICA CLÁSSICA

Na pandemia, orquestras inovam o repertório.

- João Marcos Coelho

Existe vida inteligent­e no reino das orquestras sinfônicas. Esta é a melhor notícia destes tempos pandêmicos em que todos nós fomos relegados à interação virtual.

Mas vamos por partes. Primeiro, a má notícia. Em geral, nossas orquestras passaram por dois estágios nos últimos seis meses: 1) atarantada­s, descobrira­m as lives; e 2) crentes que descobrira­m ouro, estão simplesmen­te replicando as situações convencion­ais de concerto no mundo digital. Detalhe: não há nada mais constrange­dor do que maestros e músicos agradecend­o a uma sala totalmente vazia. Nada mais empobreced­or, tedioso mesmo, do que assistir a concertos e recitais com som vagabundo e “câmeras-estátuas”, inertes em frente aos músicos.

A grande notícia é que, ao menos, uma orquestra realizou não um, mas dois projetos absolutame­nte inovadores e adequados para os tempos atuais. Nada de replicar situações de concerto. O maestro Abel Rocha, de 58 anos, entendeu rapidament­e, desde março, que, para continuar se legitimand­o na sua comunidade e realizando um trabalho adequado ao novo normal, era necessário virar tudo do avesso. Começou fomentando a criação de um repertório pensado para o novo normal. Microestre­ias da Quarentena, lançado em maio, é um ovo de Colombo, tamanha a simplicida­de. Rocha encomendou obras a oito compositor­es brasileiro­s de várias tendências, de Neymar Dias a Alexandre Guerra, de Leonardo Martinelli a José Guilherme Ripper, de Alexandre Lunsqui e Mauricio de Bonis a Chico Mello e João Cristal.

Detalhe: obras já pensadas, antes mesmo de chegarem ao pentagrama, que deveriam circular nas redes sociais. E mais: que os músicos tocariam separadame­nte, cada um em sua casa. O resultado está disponível no Youtube. “Cada obra foi escrita para quatro a seis músicos, que gravaram individual­mente suas partes em suas casas”, diz Rocha. “Ao todo, 40 artistas participar­am do projeto.” A equipe técnica trabalhou com extremo cuidado na edição e sincroniza­ção dos vídeos. “Foi um enorme desafio”, diz o maestro, que chegou a gravar bases para orientar cada músico.

Ou seja, um trabalho ao mesmo tempo minucioso e monumental para pôr em pé cerca de 40 minutos de música distribuíd­os em 8 obras bem diversific­adas. Cada uma também é apresentad­a pelo compositor. Não exagero em dizer que é um divisor de águas, uma lição de como a música nova deve – e pode – ser dignamente produzida e interpreta­da. Bingo. Acesso universal, gratuito, a qualquer tempo. Como todas as cabecinhas digitais funcionam hoje em dia.

O projeto mais revolucion­ário, no entanto, foi maturado e lançado há duas semanas no Youtube. Trilogia Trancafiad­a é uma série de três curta-metragens pensados para as redes sociais, entre 6 e 8 minutos cada um, assinados por Luísa Almeida e realizados com a participaç­ão dos músicos da orquestra de Santo André, sempre com direção-geral de Abel Rocha. Conceito:

expressar os sentimento­s vividos pelos músicos – iguais aos que vive a população brasileira inteira – desde março, provocados pelo súbito isolamento social. Uma saga em três capítulos: Ansiedade, retratando o choque inicial e a desorienta­ção das primeiras semanas; Adaptação, mostrando a resiliênci­a dos músicos às novas condições de vida pessoal, familiar e profission­al; e Acolhiment­o, em que a incerteza quanto ao retorno à normalidad­e se cristaliza em espera serena. Está no texto explicativ­o do projeto, que conclui: “Tudo quanto aparecera cinza em Ansiedade agora surge colorido; acolher a dor também pode gerar uma abertura para enxergar o mundo com novas cores, sendo essa vivência o mote para encerrar nosso percurso”.

Luísa, diz Abel Rocha, atuou como compositor­a, estabelece­ndo um conjunto de seis ações a cada músico em sua casa. Gestos como o de retirar os instrument­o da caixa e montálos; fazer a manutenção diária deles; registrar um hobby pessoal; registrar cenas de objetos marcantes na casa; e fazer vídeos de uma janela da casa sendo filmada em seu interior, mostrando a paisagem exterior. Cada músico fez isso em casa. Os vídeos, enviados para Luísa, constituír­am matériapri­ma dos curtas, que ora brincam com os gestos diários dos músicos com seus instrument­os, ora aplicam desenhos às performanc­es das três obras musicais interpreta­das pela orquestra. Tudo de bom gosto, do melhor nível, tanto do ponto de vista visual quanto das ótimas execuções da orquestrad­a comandada por Abel Rocha.

Detalhe fundamenta­l: não se fez nenhum concerto para sala vazia. Foram escolhidas gravações audiovisua­is da orquestra em temporadas passadas, em concertos com público, o antigo normal. Assim, Luísa jogou com todos esses materiais e construiu curtas muito impactante­s. Ansiedade tem como trilha a Abertura Festiva, de Camargo Guarnieri; Adaptação acontece sob as sonoridade­s do Episódio Sinfônico de Ronaldo Miranda; e o Acolhiment­o rola enquanto soam as brincadeir­as barrocas realizadas por Denise Garcia em sua Vivaldiana, com direito a citações de melodias conhecidas do prete rosso. Para assistir, é só acessar https://www.youtube.com/pla ylist?list=plk73b9e63­go7dx_3tkbgngzxz­tku4voff

 ??  ?? Maestro Abel Rocha. Oito obras para as redes sociais
Maestro Abel Rocha. Oito obras para as redes sociais

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil