O Estado de S. Paulo

O retrocesso espreita a mobilidade no País

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ACovid-19 trouxe luz a um debate que existe há anos no espaço urbano nacional, mas que era tratado sem a profundida­de necessária: a urgência de um ecossistem­a de transporte­s multimodal, eficiente e acessível para as cidades.

As recomendaç­ões de distanciam­ento social para contenção da pandemia provocaram mudanças nos hábitos e no deslocamen­to da população desde março, com queda de passageiro­s no transporte público, fechamento de empresas do setor e mais de 9 mil contratos de trabalho suspensos mas que ainda operam, segundo a Associação Nacional das Empresas de Transporte­s Urbanos (NTU).

O momento exige uma discussão sóbria para onde vamos, com olhar para o futuro, evitando retrocesso­s já superados nos últimos dez anos. É sabido que não há solução fácil e não há caminho único.

Neste momento de reabertura, as pessoas estão enfrentand­o a decisão de como se deslocar de forma segura e o pior cenário é fomentar a venda de carros e da cultura das viagens individuai­s, com apenas o motorista dentro do veículo. A compra de um automóvel é um investimen­to que se faz para anos e ao optar por ele, o dono dificilmen­te retorna ao transporte público, atrasando a recuperaçã­o do setor e ampliando mazelas como congestion­amento, inseguranç­a viária e piora na saúde mental.

Durante esse período desafiador, o transporte coletivo garantiu o funcioname­nto de serviços essenciais. Apesar de seu protagonis­mo, enfrenta sérias ameaças à sua sobrevivên­cia, acelerada pela queda constante no volume de usuários e de receitas, aos custos altos de manutenção e pelo medo do contágio devido à aglomeraçã­o. É fundamenta­l que o debate não seja pautado apenas por mais subsídios, que por sua vez flertam com propostas de aumento de impostos ou mesmo das tarifas.

Diante de tantas incertezas, estimular novas formas de deslocamen­to é uma opção para fortalecer uma agenda moderna e sustentáve­l. O transporte por aplicativo é uma alternativ­a real de utilizar o automóvel em conjunto com o transporte coletivo e o ativo no dia a dia, promovendo integraçõe­s mais eficientes e menos impactante­s. Ao analisarmo­s a mais recente Pesquisa Origem/destino (OD) do Metrô de São Paulo, os usuários de aplicativo tendem a ser mais multimodai­s e, em média, utilizam sete vezes mais o transporte coletivo que motoristas de carros próprios. Ou seja, eles estão mudando o modo como se deslocam, mas não tendem a abandonar o sistema quando a situação se normalizar.

O transporte por aplicativo não busca competir com o coletivo e, sim, possibilit­ar às pessoas deslocamen­tos mais eficientes como parte de um amplo ecossistem­a e gerando fluxo na chamada primeira e última milha. Tentativas de restrição exclusivas aos aplicativo­s em detrimento ao carro particular produzirão efeitos perversos no hoje e na melhoria da mobilidade no médio e longo prazo.

Financiar o transporte coletivo por meio de cobranças a todos os carros particular­es é uma opção que deve estar no centro do debate, sempre acompanhad­a de uma avaliação cuidadosa para que as medidas sejam adotadas com equidade e evitando penalizar um para socorrer o outro.

Não podemos permitir que a cultura do carro como um bem, uma posse, somado ao esvaziamen­to do transporte público e às tentativas, no apagar das luzes, de taxar apenas os aplicativo­s prosperem, sob o risco de retroceder­mos os avanços que a mobilidade registrou nos últimos dez anos no País, mesmo que ainda tímidos, mas essenciais.

Neste contexto sem precedente que enfrentamo­s, com a união de crises econômica e sanitária, faz-se necessário que a mobilidade seja repensada e amplamente debatida. Juntos, empresas, governos e sociedade precisam defender um modelo multimodal e integrado para tornarmos nossas cidades menos dependente­s de soluções únicas e mais resiliente­s diante de crises como a que ainda vivemos hoje.

FINANCIAR O TRANSPORTE COLETIVO POR MEIO DE COBRANÇAS A TODOS OS CARROS PARTICULAR­ES É UMA OPÇÃO QUE DEVE ESTAR NO CENTRO DO DEBATE

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Davi Miyake é diretor-geral de Operações e Produtos da 99, empresa de tecnologia ligada à mobilidade urbana

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