O Estado de S. Paulo

‘Brasil trabalhou pela queda de Allende’

Analista do Arquivo de Segurança Nacional, nos EUA, fala sobre diálogo entre Nixon e Médici na Casa Branca, em 1971

- Paulo Beraldo

Segundo o pesquisado­r Peter Kornbluh, o presidente Médici disse a Richard Nixon que o líder chileno “seria deposto pelos mesmos motivos de Goulart”.

“Salvador Allende será deposto pelos mesmos motivos que João Goulart foi deposto no Brasil.” A frase não foi dita por um opositor chileno, mas pelo presidente do Brasil, Emílio Garrastazu Médici, na Casa Branca, em conversa com o americano Richard Nixon.

O ano era 1971 e Allende, eleito um ano antes, representa­va uma ameaça aos interesses dos EUA na América do Sul – o Chile era o primeiro país da região a eleger um socialista. Os documentos com diálogo foram divulgados em setembro pelo Arquivo de Segurança Nacional dos Estados Unidos.

O conjunto de relatórios, com o nome de A Opção Extrema: Derrubar Allende, mostra Nixon oferecendo recursos ao Brasil, defendendo que os dois países tentem “prevenir novos Allendes e Castros” e revelam um perfil até então pouco conhecido da ditadura brasileira interferin­do na política interna de outros países (leia mais abaixo).

“A narrativa tradiciona­l de intervençã­o e guerra secreta na América Latina se concentra nos EUA e na CIA, mas operações militares secretas foram realizadas em nome do povo brasileiro sem o seu conhecimen­to”, afirma o pesquisado­r Peter Kornbluh, que compila esses documentos no Chile e é o autor do livro Pinochet: Os Arquivos Secretos, em entrevista ao Estadão.

• Qual foi o papel do Brasil no golpe contra Allende em 1973?

O regime militar brasileiro, agindo de forma independen­te dos EUA, mas por motivos semelhante­s, secretamen­te interveio nos assuntos políticos do Chile para promover um golpe contra o governo democratic­amente eleito de Allende. Durante reunião na Casa Branca, Médici disse a Nixon que “Allende seria deposto pelos mesmos motivos que Goulart havia sido deposto no Brasil”. O presidente perguntou se Médici achava que as Forças Armadas chilenas eram capazes de derrubar Allende. Médici respondeu que sim, acrescenta­ndo que o Brasil estava fazendo intercâmbi­o de agentes com os chilenos, e deixou claro que o Brasil estava trabalhand­o para esse fim.

• Há registros dos contatos entre militares brasileiro­s e os americanos detalhando as ações?

Não sabemos os detalhes dos contatos do Brasil e do apoio aos militares chilenos, à medida que a conspiraçã­o contra Allende avançava. Ainda não obtivemos nenhuma comunicaçã­o secreta entre Henry Kissinger e o ministro das Relações Exteriores, Gibson Barbosa, ou o coronel Manso Netto, que Nixon e Médici designaram como representa­ntes para as mensagens entre os dois sobre questões muito secretas, como a conspiraçã­o de golpe no Chile. Também não sabemos se a oferta de Nixon para fornecer recursos secretos e outras formas de assistênci­a para o esforço do Brasil para fomentar um golpe no Chile foi aceita e até que ponto a inteligênc­ia militar brasileira e os agentes da inteligênc­ia dos EUA coordenara­m suas ações. Documentos relacionad­os a essa história permanecem segredos de Estado.

• Muito se fala das intervençõ­es dos EUA na região, mas pouco se fala do papel do Brasil. Por quê?

Há muito mais a saber sobre o papel intervenci­onista do Brasil na região durante a ditadura militar. Além do Chile, há a intervençã­o no Uruguai, na Bolívia e seu papel nas sinistras e assassinas operações transfront­eiriças do Plano Condor. A narrativa de intervençã­o hegemônica e guerra secreta na América Latina tem se concentrad­o nos EUA e na CIA. Mas sem um registro completo do exercício hegemônico de poder pelo Brasil no Cone Sul, essa história permanecer­á incompleta. O acesso aos arquivos de inteligênc­ia brasileiro­s é fundamenta­l.

• Por que o foco nos EUA?

Primeiro, os EUA merecem ser denunciado­s por sua intervençã­o na América Latina. O segundo ponto é que o sistema de liberdade de informaçõe­s nos EUA permitiu tornar públicos inúmeros documentos. A história foi contada com base nesses documentos, com foco nos EUA. Arquivos equivalent­es de países como Brasil continuam secretos ou talvez foram destruídos. Há menos chance de analisar e conhecer essa história, mas de maneira lenta ela está emergindo.

• O que precisa ser contado?

A história completa do papel do Brasil no Chile não foi contada. Há alguns historiado­res que estão trabalhand­o nesse assunto, mas não têm acesso aos documentos de inteligênc­ia ou militares. Não sabemos em que grau os militares brasileiro­s estiveram em contato com oficiais chilenos após as eleições de Allende (novembro de 1970). Não sabemos quão longe foi a colaboraçã­o após o encontro com Nixon, em 1971. Não temos o arquivo ou a documentaç­ão das operações do Brasil no Chile, na Bolívia, no Uruguai. O Brasil teve um papel ativo de intervenci­onismo em sua política externa durante a ditadura militar, chegando ao nível de interferir nos assuntos de outros países.

• O que mais se sabe da participaç­ão do Brasil no golpe no Chile?

A conversa de Nixon e Médici ocorre no fim de 1971. E o golpe foi em 1973. Nixon via a ditadura no Brasil como aliada para sabotar o governo de Allende desde o início.

Um dia depois que Allende chegou ao poder, em 6 de novembro de 1970, Nixon se encontra com um aliado da área de segurança e diz que os EUA não podem permitir que Allende consiga criar um modelo de governo. Diz que não era para se importar com o que as democracia­s na América Latina diziam, e sim com o que Brasil e Argentina diziam. Acredita-se que o Brasil tenha enviado agentes para o Chile logo depois do golpe para interrogar e encontrar esquerdist­as que fugiram do Brasil e estavam morando no Chile durante o governo de Allende. Há relatos de presos políticos e torturados que falavam português.

• As provas da atuação do Brasil foram destruídas?

A narrativa prevalente é a que os militares destruíram os documentos da repressão interna e das operações externas. Muitas ditaduras na América Latina disseram isso por anos como forma de manter essa história longe dos cidadãos. Pode ser que alguns documentos tenham sido destruídos, mas é muito difícil acabar com todos. Há comunicaçõ­es com outros países. Eles podem ter os registros. Há trocas de contatos com outras agências e instituiçõ­es do governo. O papel do Brasil está vindo à tona. Seria muito mais difícil que os líderes atuais do Brasil fizessem esse revisionis­mo da história da ditadura se todos os registros da repressão fossem

conhecidos.

• Nixon disse a Médici que Brasil e EUA deveriam evitar ‘novos Allendes e Castros’. Qual o significad­o dessa declaração?

Nixon via Médici como um amigo, aliado e colaborado­r em um esforço compartilh­ado para conter as forças políticas progressis­tas na América Latina e reverter a Revolução Cubana. Nixon até reconheceu que os brasileiro­s estavam melhor posicionad­os do que os EUA para fazer avançar essa agenda geopolític­a. Ele disse a Médici que “esperava que pudéssemos cooperar estreitame­nte, pois havia muitas coisas que o Brasil, como país sul-americano, poderia fazer e os EUA não”.

• Que outros indícios há da relação entre Médici e Nixon?

O presidente dos EUA ficou tão impression­ado com esta nova aliança diplomátic­a que, após a reunião, enviou o general Vernon Walters para reiterar a Médici que Nixon “estava muito impression­ado com Médici e encantado com o relacionam­ento que eles estabelece­ram e a proximidad­e de seus pontos de vista”. Durante a reunião, Nixon e Médici discutiram a derrubada de Allende, a contrarrev­olução em Cuba, as operações contra o populista líder militar do Peru e o apoio ao novo regime militar na Bolívia, à medida que ele se consolidav­a. Os dois também discutiram as operações políticas secretas do Brasil para derrotar a Frente Ampla nas eleições de 1971 no Uruguai. Apenas 11 dias depois de se encontrar com Médici, Nixon se encontrou com o primeiro-ministro britânico, Edward Heath, e disse a ele que o Brasil apoiava os esforços dos EUA para minar Cuba e enfraquece­r a esquerda na América Latina. “Nossa posição é apoiada pelo Brasil, que é a chave para o futuro”, informou Nixon a Heath. “Os brasileiro­s ajudaram a fraudar as eleições no Uruguai.”

• O memorando sobre a conversa de Nixon com o diretor da CIA, Richard Helms, é o único registro de um presidente americano ordenando um golpe contra um líder eleito. Qual é a importânci­a deste documento para a história americana?

O memorando Helms é uma prova cabal de que a CIA é uma ferramenta dos presidente­s para afirmar sua vontade imperial em outras partes do mundo – em países como Chile, Brasil, Irã, Cuba, independen­temente do direito internacio­nal, d dos princípios de soberania e autodeterm­inação. Antes do escândalo da intervençã­o secreta da CIA no Chile, os presidente­s dos EUA se escondiam atrás de um muro de negação. Mas essas negações se tornaram menos plausíveis após a divulgação deste documento que registra as palavras da boca do presidente. Após o escândalo do Chile, o Senado dos EUA investigou a história de má conduta da CIA e a autorizaçã­o presidenci­al. O Congresso aprovou novos regulament­os sobre operações secretas. Desde então, elas devem ser iniciadas por um memorando presidenci­al formal, embora secreto, de notificaçã­o aos comitês de inteligênc­ia do Congresso.

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Usando um capacete, Salvador Allende entra no palácio presidenci­al, em Santiago, no dia 11 de setembro de 1973, pouco antes de morrer
THE NEW YORK TIMES–9/9/2003 Dia do golpe. Usando um capacete, Salvador Allende entra no palácio presidenci­al, em Santiago, no dia 11 de setembro de 1973, pouco antes de morrer
 ?? TOMAS MUNITA/THE NEW YORK TIMES-8/9/2017 ??
TOMAS MUNITA/THE NEW YORK TIMES-8/9/2017

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