O Estado de S. Paulo

FAMÍLIA BRIGAS, DESEMPREGO E RITOS DO COTIDIANO

‘Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu’: fronteira entre a ficção e realidade da vida familiar do diretor Bruno Risas

- Luiz Carlos Merten

Diretor de fotografia de filmes que fazem a diferença no cinema brasileiro atual – A Rosa Azul de Novalis, de Gustavo Vinagre, Era o Hotel Cambridge, de Eliane Caffé, e Desterro, de Maria Clara Escobar –, Bruno Risas estreia na direção de longa com Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu. O filme circulou por festivais nacionais e internacio­nais. Passou na Mostra Aurora, de Tiradentes, e no Festival de Turim, na Itália. O curador do evento deixou Bruno todo sorrisos – disse que depois de ver o filme três vezes em link, a quarta, na tela grande, revelou outro filme, muito mais belo.

Bruno quer continuar sua carreira de autor, mas nem sonha em abandonar a direção de fotografia. Ama o trabalho em equipe, a troca. Reflete sobre a fotografia de filmes: “A gente faz o filme pensando na tela grande, mas cada vez mais a multiplici­dade de telas permite que as pessoas escolham como e quando vão ver os filmes. Tem gente que vê no celular, no ônibus, no metrô. Não é a mesma fruição do cinema, mas a gente segue trabalhand­o para fazer os filmes fortes, intensos.”

Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu começou a nascer há dez anos, num momento de crise. Desde a quinta-feira, 15, encontra-se disponível na Netflix. A crise econômica que atingira os EUA e a Europa tinha seus reflexos no Brasil de 2010, que também fazia a transição da presidênci­a de Luiz Inácio Lula da Silva para Dilma Rousseff.

“Minha família havia experiment­ado certa ascensão social, mas aí vieram os problemas. Perda de emprego, disputa pela casa, com os meus tios. Comecei a filmar algumas imagens com eles – minha mãe, meu pai, minha avó, que morreu no ano passado, minha irmã. Filmava, sem saber o filme que estava fazendo. E aí, um dia, descobri o que queria fazer. Todo mundo que vê o filme e com quem converso fala nessa pegada de documentár­io, mas embora seja a minha família, a obra é uma ficção. Estou falando de conflitos familiares numa dimensão meio fantástica, com um toque de ficção científica.”

O filme venceu o prêmio da primeira obra no Festival Cinéma du Réel. A coisa estranha no céu é um disco-voador. A mãe é abduzida. Como fica a vida familiar? “Comecei a filmar numa situação de desemprego que estava atingindo a minha família, mas aí ocorreu uma coisa curiosa. Estava fazendo o filme sozinho, mas ganhei um dinheiro para a produção e a situação mudou. A Flora Dias veio filmar comigo e eu pude empregar as pessoas, num esquema mais profission­al. (Flora assina a fotografia do filme concluído e também tem crédito de assistente). Até os meus pais passaram a ter uma atitude diferente em relação ao que estávamos fazendo.” E foi aí que houve a grande mágica: “Conversava muito com amigos sobre o absurdo da vida cotidiana, que, para nós, não difere do absurdo da ficção científica. Os códigos que definem as funções sociais das pessoas são invenções, e por isso foi possível encarar o gênero num formato de drama familiar documental.”

A sacada de Bruno foi descobrir que sua mãe, Viviane Machado, poderia ser uma verdadeira, e grande, atriz. A dona de casa que nunca represento­u revela uma beleza particular. Possui a boca amarga de estrelas como Jeanne Moreau e Lilian Lemmertz, e fuma muito, como a primeira. Encara a câmera sem piscar e num silêncio que amplifica o drama. Numa das cenas, ela não consegue manter o silêncio, ou finge que não consegue. Começa a rir e explode, batendo boca com o filho cineasta. Bruno aparece bastante no filme, que começa com sua voz. Em outra montagem, chegou a aparecer mais, mas achou que estava sendo narcisista e reduziu a presença. Nesse caso específico, a discussão com a mãe, em que as vozes de ambos se alteram – ela em primeiro plano, ele, fora de campo -, Bruno não consegue diferencia­r o que é ficção e o que é documentár­io.

“São as duas coisas, o híbrido é muito forte.”

Justamente o híbrido. “O filme circula muito por diversas formas. É metalinguí­stico, faz perguntas para si e para os personagen­s. E era um processo que todo mundo vivia de forma muito intensa. No começo era tudo muito simples e direto, mas quando a equipe cresceu e tinha um monte de gente na casa, passou a haver uma construção elaborada, com travelings, refletores. E havia a rotina de filmar, que não era a da casa. A gente chegava cedo, definia a cena, filmava. E quando ocorriam coisas interessan­tes no set, a gente agregava. Tudo isso eu tinha de discutir principalm­ente com minha mãe, que é quem mais aparece.”

Bruno está acostumado a filmar personagen­s reais. Sabe que a exposição é grande, quando as pessoas aparecem e se veem na tela. Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu aborda questões íntimas da família – feridas. “Não queria expor meus pais, mas quando levamos o filme a Tiradentes, e eu vou muito à Aurora, percebi que eles estavam tranquilos. Os problemas deles foram ressignifi­cados para a plateia.” Com certeza. Com essa mãe, Bruno deu universali­dade à história de sua família.

 ?? SANCHO&PUNTA ?? Exposição
História familiar de Bruno Risas (de vermelho)
levada aos festivais nacionais e de fora do País
SANCHO&PUNTA Exposição História familiar de Bruno Risas (de vermelho) levada aos festivais nacionais e de fora do País

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil