O Estado de S. Paulo

Lápis, papel e treino são essenciais à alfabetiza­ção

Criança precisa trabalhar coordenaçã­o motora fina e cérebro entende palavra como imagem na execução da letra cursiva, diz especialis­ta

- Luciana Alvarez

Digitar em teclados e preencher lacunas em telas passou a fazer parte da rotina escolar mesmo de crianças na educação infantil, nem que seja para se logar em aplicativo­s. Porém, esses equipament­os não acabam com a necessidad­e de se usar outras tecnologia­s humanas, que foram revolucion­árias em outra época: papel e lápis. O espaço para o não digital é defendido pela educadora e antropólog­a Elvira Souza Lima, tendo como base pesquisas das neurociênc­ias.

Elvira explica que o cérebro humano não foi programado pela natureza para ler e escrever. Essas são, portanto, aprendizag­ens culturais bastante complexas. “Traçar, falar e cantar estão na constituiç­ão genética da espécie. Para ler e escrever, o cérebro precisa se reorganiza­r: existem 17 áreas no cérebro envolvidas no processo de leitura e mais 4 para a escrita”, diz a especialis­ta.

O papel ganha dos teclados na fase da alfabetiza­ção porque inclui a coordenaçã­o motora fina no processo. “O movimento é um sexto sentido para o cérebro. Com o movimento de escrever no papel, você consolida melhor as memórias”, explica a pesquisado­ra. Durante o processo de alfabetiza­ção, a cursiva também traz outras vantagens, ao fazer as letras de cada palavra ficarem conectadas. “Na cursiva, o cérebro percebe a palavra como uma imagem: são unidades de percepção. Isso influencia na construção do significad­o”, completa Elvira.

Outro ponto em que a escrita à mão supera a digitação é que a letra de cada um, por ser única, carrega uma forma de expressão da identidade, o que mobiliza o cérebro para mais aprendizad­os. “A cursiva envolve mais o sistema emocional. Por isso também que o professor não deve pôr a caneta vermelha no caderno de uma criança. Tem uma pessoa por trás daquela escrita.”

Menos telas. Mesmo depois do processo de alfabetiza­ção, o uso de telas para o aprendizad­o deve ser feito com parcimônia, recomenda. “A tela cansa, faz a atenção flutuar e ainda interfere no sono. A luminosida­de mexe com químicas do cérebro que podem provocar irritação, desinteres­se e levar até ao vício”, alerta a pesquisado­ra. Elvira aconselha os pais, na hora de escolher uma escola para os filhos, a refletirem se as tecnologia­s são de fato importante­s do ponto de vista pedagógico, ou apenas um recurso “mercadológ­ico”, para atrair em função de um discurso de modernidad­e.

A pesquisado­ra ressalta que, apesar de pedir moderação no uso, ela é fã de tecnologia­s. “Escrevi minha tese de doutorado datilograf­ando, cortando e recortando tirinhas para editar. Lógico que teria sido muito melhor no computador, um equipament­o maravilhos­o.”

A pesquisado­ra lembra que mesmo os livros didáticos em papel muitas vezes seguem uma lógica ditada pelos aparelhos tecnológic­os e promovem distração. “Estudar tem de ser mais do que preencher quadradinh­os. Vejo muito material didático com um monte de cores e informaçõe­s, no intuito de ser mais motivador. Mas é tanta coisa que o cérebro não dá conta de processar tudo, e a criança se desliga da palavra”, afirma.

Para o futuro longínquo, Elvira até consegue imaginar não só uma escola, mas toda uma sociedade sem papel, pois o cérebro humano também vai se alterando de acordo com a invenção de novos instrument­os tecnológic­os. “Se todo mundo tiver acesso, pode ser que daqui a cem anos tenhamos uma substituiç­ão total. Então a humanidade talvez prescinda do papel. Mas, por enquanto, não.”

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CRISTINA QUICLER/AFP Identidade. Forma de expressão única está contida nos traços e nas letras escritas à mão; processo também ajuda a consolidar memórias e a estimular cérebro a continuar aprendendo
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Escrever no papel consolida memórias, lembra Elvira
MGUIMARÃES Benefício. Escrever no papel consolida memórias, lembra Elvira

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