O Estado de S. Paulo

‘Escola de bairro é sonho de pedagoga, não de especialis­ta em crise’

Segundo coordenado­r no Insper, retomada será crítica sobretudo nas instituiçõ­es menores e retorno das crianças dependerá de informaçõe­s claras sobre cuidados

- / LUCIANA ALVAREZ, ESPECIAL PARA O ESTADO

Colégios de bairro, que oferecem sobretudo a educação infantil, cumprem função fundamenta­l de desenvolvi­mento cognitivo e social, destaca Tadeu da Ponte, coordenado­r de processos seletivos no Insper e professor na área de métodos quantitati­vos. “Uma escola de bairro de educação infantil é o sonho de uma pedagoga, não de uma empresária especialis­ta em gestão de crise”, explica o matemático sobre as dificuldad­es acumuladas no setor.

• Pensando na educação do Brasil como um todo, as escolas pequenas, de bairro, têm um papel de pouca importânci­a?

Não, embora seja percebido dessa forma. As próprias famílias olham para as escolas de bairro, e para a educação infantil no geral, como um lugar para deixar a criança durante um tempo em que o pai e a mãe têm de trabalhar. Mas temos uma enorme assimetria entre a percepção dos pais, da sociedade como um todo, e o que a evidência científica em educação nos revela. Os estímulos que a criança recebe na primeira infância são cruciais para o desenvolvi­mento cognitivo e emocional. A criança receber estímulos adequados na primeira infância traz impactos até o ensino médio, até a vida profission­al. O segundo ponto é o contato dessa criança com outras, que cria também estímulos para ela se desenvolve­r e aprender. Por mais que as escolas de bairro, pequeninas, não tenham o prestígio ou porte da grandes, elas fazem um trabalho fundamenta­l para o desenvolvi­mento infantil.

• Muitas instituiçõ­es faliram na pandemia. Isso é, então, um problema para o País?

Exato. Lembro que em abril me perguntara­m sobre a importânci­a de adiar o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Claro que é importante respeitar o tempo do estudante que está agora no último ano do ensino médio, mas me preocupa muito mais o Enem de daqui a 15 ou 16 anos. Aquilo que a gente pode perder com o fechamento de escolas e diminuição da disponibil­idade de vagas na primeira infância vai ter um efeito bem mais sério. O aluno que vai prestar Enem neste ano não consegue dar aquela corrida final. Mas os do ensino infantil estão no início da trajetória deles, então é uma perda menos recuperáve­l. No Plano Nacional de Educação, uma das metas é universali­zar as creches. Ainda antes da pandemia, na área pública, essa era uma enorme batalha dos governos municipais, que são os responsáve­is. A gente retrocede com o fechamento dessas escolas.

• E há outro tipo de prejuízo?

Sim: as situações de abuso, agressões, violência física. Eu comparei os estímulos limitados que a criança tem ficando em casa com os estímulos dentro de uma estratégia pedagógica de uma escola, mais o contato com outras crianças, porque minha área de trabalho é análise de dados em avaliações. Os abusos são questões importante­s, mas fatores difíceis de mensurar. De qualquer forma, a escola é um ambiente seguro, com regulação entre pares. É muito raro acontecer abusos na escola, muito mais do que nas casas. Esse tem de ser um ponto de atenção.

• É possível prever um cenário para os próximos anos? As escolas pequenas vão reaparecer?

É difícil prever. Uma escola de bairro de educação infantil é o sonho de uma pedagoga. Em geral, essa pessoa não é uma empresária que lida bem com as finanças, gestão, crise. É alguém que gostava de educar crianças, começou com um pequeno grupo, cresceu, tinha uma escolinha de 40 ou 50 alunos. Trabalhava num regime de caixa: arrecadava as mensalidad­es, pagava as despesas. Imagina o trauma dessa pessoa viver uma situação em que vê sua receita indo embora até o momento de fechar. Não sei com que velocidade, pensando num agregado de mercado, essas pessoas voltariam a arriscar. O vínculo entre as famílias e a escola é bastante forte. Possivelme­nte essa famílias, na retomada, exerçam algum tipo de influência, pedindo pelo retorno. Mas não sei o quanto o trauma vai ser relevante.

• O que acontece quando a demanda pela educação infantil em escolas particular­es voltar?

Podemos estabelece­r alguns cenários. Nas escolas maiores, houve redução ou fechamento desse segmento, mas as instituiçõ­es continuara­m operando os ensinos fundamenta­l e médio. As instituiçõ­es maiores talvez tenham mais agilidade para absorver essa demanda. Em um bairro em que havia dez escolas pequenas e uma grande, todas dividindo a demanda pela educação infantil, talvez sobrem cinco pequenas e a grande absorva o restante. Uma coisa é certa: onde houver a demanda, ela vai puxar a oferta. Embora não seja tão automática a volta dessa capacidade instalada, de alguma forma a oferta vai voltar. Há dois fatores complexos no meio. Há muitas educadoras mais velhas, no grupo de risco, particular­mente na educação infantil. Em um cenário de transição, não sei o quanto os donos de escola contarão com sua disponibil­idade de equipes. Outra questão: os protocolos de saúde são bem complicado­s para a educação infantil. Você tem de manter o ambiente muito higienizad­o, manter um controle grande se alguma criança está apresentan­do sintoma, estabelece­r novos acordos com as famílias. Além da barreira da decisão de negócios, tem barreiras de operação.

• Para as escolas que sobreviver­am até agora, o que devem fazer para se manter no mercado?

Um grupo de famílias precisa da escola logo. Quem está precisando da escola agora é quem está trabalhand­o. Quem está trabalhand­o é quem tem menos perda de renda. Por mais que a solução doméstica encontrada depois de tanto tempo de pandemia já não seja

As escolas que estão operando devem se adaptar e identifica­r a melhor maneira de atender o que as famílias precisam

tão provisória, não quer dizer que seja uma solução confortáve­l. As escolas que estão operando devem ser adaptáveis, rápidas para identifica­r a melhor maneira de atender o que as famílias precisam. Se for dois dias na semana, que sejam dois dias bem planejados. Precisam ainda mostrar para as famílias o cuidado que vão adotar com a saúde.

• Por que essa comunicaçã­o é importante?

Nas pesquisas, tem um grupo que quer que as crianças voltem com certeza, outro que não quer de jeito nenhum. Mas o maior grupo de pais diz “depende”. Depende de como for o cuidado, o protocolo. Eles mostram uma inseguranç­a. Uma vez o serviço podendo ser efetivamen­te prestado, o quanto melhor as escolas conseguire­m lidar com esse depende, com essas condiciona­ntes, elas vão ter certamente um desempenho melhor. A sobrevivên­cia da escola pequena está relacionad­a a questões sistêmicas. É necessário a retomada da economia para geração de demanda pela escola, a permissão para voltar a operar e uma agilidade da escola em atender as famílias no novo modelo.

• Uma concentraç­ão das vagas particular­es em turmas de grandes grupos é ruim?

Existem prós e contras na consolidaç­ão do mercado de educação básica. Consolidaç­ão é ter menos mantenedor­es sendo donos de mais unidades, atendendo a uma fatia maior da demanda. Um ponto positivo é que, numa rede, você tem em geral uma inteligênc­ia pedagógica com mais recursos. Há uma área que faz o planejamen­to de currículo, outra a formação dos coordenado­res e professore­s. Uma escola individual não consegue ter uma equipe de pedagogos só pensando no currículo. Tem de fazer isso enquanto dá aula e socorre o menino que quebrou o dente. Uma desvantage­m de uma consolidaç­ão de mercado em educação básica é aquilo que a teoria econômica aponta como ruim em qualquer tipo de monopólio ou oligopólio: o controle sobre os preços. A mensalidad­e pode ficar mais cara para as famílias e as condições de remuneraçã­o e trabalho para os professore­s ficarem piores. Se tem um grande contratant­e que emprega quase todo mundo numa região, ele paga o quanto ele quer. Mas estamos muito longe de ter um oligopólio.

As famílias olham para a educação infantil como um lugar para deixar as crianças enquanto os pais trabalham

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CRISTINA QUICLER/AFP Evolução. Quando há estímulos adequados na primeira infância, isso tem efeitos até a vida profission­al, explica especialis­ta; contato com outras crianças também ajuda a aprender
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MARTA DA PONTE

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