O Estado de S. Paulo

NAVALNI, O HOMEM QUE SOBREVIVEU

Opositor russo que saiu vivo de uma tentativa de envenename­nto diz em entrevista estar ‘mais forte do que nunca’

- / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Opositor russo que foi envenenado e sobreviveu diz estar “mais forte do que nunca”.

‘Paradoxalm­ente, me tornei mais humano, sentimenta­l até’, diz Navalni sobre sua experiênci­a de quase morte

Alexei Navalni, o carismátic­o líder da oposição na Rússia, sempre teve alguma coisa de herói de Hollywood, e ele gosta de ilustrar seus discursos com referência­s a filmes populares. Ao refletir sobre sua aventura da Sibéria, para onde viajou e foi envenenado com um agente neurotóxic­o chamado novichok, até um hospital em Berlim, onde ficou em coma durante três semanas, ele tem consciênci­a do caráter cinematogr­áfico de sua trama: de um herói popular que desafia um ditador maligno que tenta matá-lo com um veneno misterioso. Mas seus fiéis amigos e sua devotada mulher o trazem de volta à vida. “Começa como um thriller político, depois se transforma numa comédia romântica”, disse ele, numa entrevista à The Economist em Berlim.

Mas a intubação deixou marcas no seu pescoço, ele está esquálido, o tremor das suas mãos e a insônia são bem reais para um filme de Hollywood. E as maiores mudanças são menos visíveis. “Paradoxalm­ente, eu me tornei mais humano, talvez até sentimenta­l”, afirmou. Olhando uma recente filmagem por satélite de drones militares atacando alvos no conflito entre Azerbaijão e Armênia, ele se surpreende­u, pensando, “espera um pouco, este ponto negro é uma pessoa que provavelme­nte acabou de perder as pernas e agora olha fixamente para o céu. É bom um político encarar a face da morte”, disse.

Navalni, que quase morreu em 20 de agosto a bordo do avião que seguia da Sibéria para Moscou, certamente encarou a morte. A forte presença policial diante da casa em Berlim onde vem se recuperand­o confirma que ele ainda corre perigo, ameaçado pelo homem que ele acredita ter ordenado ou sancionado seu envenename­nto. E Navalni diz o nome dele em alto e bom som: Vladimir Putin, o presidente da Rússia.

A começar pela arma. A toxina foi identifica­da pela Alemanha como uma nova versão do novichok, um agente neurotóxic­o, dos tempos da Guerra Fria, de padrão militar. “Não existe mercado ilegal para esse agente”, disse. “E o fato de ele ser uma nova variedade significa que a Rússia tem um programa ativo de produção de armas químicas proibidas que só podem ser acessadas pelos serviços especiais e com aprovação de Putin.”

A recusa do Kremlin de investigar o envenename­nto e a sua disposição de romper relações com a Alemanha e a União Europeia, com o fim de encobrir o caso, confirma o envolvimen­to de Putin, afirmou ele. Como também a explicação de Putin, em conversa com o presidente francês, Emmanuel Macron, de que Navalni se envenenou para desacredit­ar o Kremlin. Foi uma frase tão absurda que Macron a vazou para imprensa. “Isto mostra que Putin não consegue transferir a responsabi­lidade pelo ocorrido.”

Seu envenename­nto marca a transforma­ção do regime russo “como aquele momento no filme Alien, quando uma casca de ovo se quebra e dali surge um monstro. Não há mais limites”, disse. Uma morte misteriosa com um veneno invisível tinha por objetivo infundir o terror. “Putin claramente se regozija com esta ideia da sua mística e poderes mortais.” O fato de Navalni ter sobrevivid­o, graças em grande parte aos pilotos que realizaram um pouso de emergência em Omsk, não muda essa mensagem.

O líder oposicioni­sta também é claro quanto aos motivos, que estão ligados a sua ida para outras regiões, fora de Moscou, que são o baluarte do poder do regime. Ele esteve na Sibéria, mobilizand­o os eleitores contra o partido de Putin no poder, o Rússia Unida, quando foi envenenado. Tendo perdido o apoio da classe média em Moscou e São Petersburg­o, o Kremlin tolerava o ativismo de Navalni nessas cidades. Mas o fato de ele ir para regiões centrais do país era um perigo.

“O regime se mantém unido pela percepção do apoio sólido da população chamada ‘sal da terra’ dessas regiões. Nossa principal tarefa era destruir esse mito”, disse Navalni. Para isso, criou uma extensa rede regional e orquestrou uma estratégia chamada de “voto inteligent­e”, direcionan­do aqueles que estavam fartos do regime para o partido alternativ­o mais bem colocado. “Seja qual for o poder do Kremlin de controlar os tribunais e serviços de segurança, o partido é o instrument­o mais básico do seu poder”, observou.

Nos últimos dois anos, o Kremlin tentou, mas fracassou, em erradicar a rede de Navalni usando meios convencion­ais, incluindo o assédio, a prisão de ativistas e o congelamen­to de contas bancárias. Mas quando protestos em massa irromperam na distante Khabarovsk e na Bielo-rússia, a percepção da ameaça entre os homens da segurança de Putin mudou – como também suas táticas.

“Eles podem não ter dito a Putin que os protestos em Khabarovsk eram resultado do descontent­amento provocado pela prisão de um governador popular”, disse. Mas provavelme­nte disseram que as manifestaç­ões eram parte de um plano do Ocidente, operando por meio de Navalni, e que mais protestos ocorreriam. Assim uma permissão para adotar “medidas especiais” foi requerida e autorizada, ele acredita.

Mas, se esperavam neutralizá-lo, conseguira­m o oposto. O líder oposicioni­sta está com o moral ainda mais elevado e conquistou a simpatia dos que antes não o apoiavam. Uma visita da chanceler alemã ao hospital para vê-lo aumentou seu prestígio internacio­nal.

O Kremlin parece desesperad­o para impedir seu retorno, alegando que ele tem vínculos com a CIA e o ameaça com acusações de traição. Navalni está determinad­o a retornar à Rússia e contestar a legitimida­de de Putin. “Apesar de todo o seu poder e o seu controle de tudo, sabem que existe um amplo processo histórico se formando contra eles.”

Ele tem consciênci­a dos riscos, mas decidiu assumir um papel de liderança neste drama, termine ele em tragédia ou num triunfo no estilo de Hollywood.

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REUTERS Retorno. Navalni, em Berlim, lê cartões e mensagens de apoiadores após a tentativa de envenename­nto

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