O Estado de S. Paulo

Calamidade como oportunida­de

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O que interessa é vender ao eleitor ilusão de que é possível obter dinheiro em troca do voto.

Calamidade pode até rimar com oportunida­de, mas quando políticos inescrupul­osos transforma­m uma terrível pandemia em pretexto para ignorar responsabi­lidades básicas na administra­ção pública, em especial no cuidado das finanças, a rima é pobre – em muitos sentidos.

O Estado noticiou que um dispositiv­o da Lei Complement­ar 173/20, que estabelece uma série de medidas para socorrer Estados e municípios na pandemia, pode servir de brecha para que prefeitos criem despesas na reta final de seus mandatos sem a obrigação de deixar dinheiro em caixa para que os próximos prefeitos as honrem.

A Lei de Responsabi­lidade Fiscal impede que governante­s, nos oito meses finais de seu mandato, assumam gastos que represente­m obrigações para seus sucessores sem que haja recursos disponívei­s para o pagamento. Essa proibição, que prevê até pena de prisão para quem descumpri-la, visa justamente a impedir que os governante­s usem a máquina pública em sua campanha pela reeleição.

Mas a calamidade causada pela covid-19 levou o Congresso a suspender temporaria­mente essa obrigação, em vista da necessidad­e de ampliar gastos relacionad­os à pandemia neste ano eleitoral. O problema é a interpreta­ção que se faz do que é “calamidade” e de seus efeitos.

Para o presidente da Confederaç­ão Nacional dos Municípios, Glademir Aroldi, por exemplo, “a falta de recursos para pagamento de salário também é causada pela pandemia”. O argumento é que houve sensível queda na arrecadaçã­o dos municípios em razão da crise e, portanto, a calamidade é generaliza­da, muito além de áreas como saúde, educação e trabalho, o que justificar­ia a inclusão de todas as despesas das prefeitura­s na exceção aberta pelo Congresso.

A penúria dos cofres públicos com a pandemia é evidente, em todos os níveis. Era necessário, portanto, que a União socorresse Estados e municípios, o que foi feito. O problema, desde sempre, é saber distinguir o que é gasto que resulta da pandemia e o que é gasto produzido por má gestão ou, simplesmen­te, com gastança e objetivos eleitoreir­os. A diferença pode estar apenas nos escrúpulos dos gestores – algo que ultimament­e anda escasso.

É dessa confusão que os oportunist­as podem extrair preciosas vantagens na tentativa de se reeleger e também de escamotear dificuldad­es de caixa que são fruto de barbeirage­m administra­tiva ou de demagogia. Nesse aspecto, a pandemia veio a calhar.

Ao mesmo tempo que serve como alegação para liberar a gastança de prefeitura­s em ano eleitoral, a pandemia também é explorada como oportunida­de por candidatos neste ano. Como mostrou o Estado ,6 dos 14 candidatos à Prefeitura de São Paulo prometem alguma forma de auxílio em dinheiro, seja temporário, para os afetados diretament­e pela crise, ou em caráter permanente, na forma de renda mínima.

Não espanta que esse seja um dos temas dominantes da campanha, malgrado o fato de que pouco ou nada tenha a ver diretament­e com a administra­ção municipal. Milhões de moradores da cidade estão em situação crítica e precisam de alguma forma de assistênci­a emergencia­l. O problema, como sempre, é que os planos dos candidatos não estão lastreados na realidade fiscal do Município – que, diferentem­ente do governo federal, não pode emitir títulos para se financiar.

Além disso, um programa de renda mínima que valha somente em um município certamente atrairia habitantes de outras cidades, o que ampliaria considerav­elmente a despesa da prefeitura e, consequent­emente, a crise social.

É óbvio que nenhum candidato está muito preocupado com nada disso. O que interessa é vender a um eleitorado exaurido pela crise sanitária, econômica e social a ilusão de que é possível obter dinheiro do governo em troca de seu voto.

O atalho da irresponsa­bilidade fiscal em geral dá no despenhade­iro, como o País já devia ter aprendido após as amargas lições da hiperinfla­ção e do caos econômico dos anos 80. Mas a pandemia, ao demandar soluções excepciona­is e muitas vezes extremas, criou as condições para que políticos medíocres possam oferecer seu populismo como panaceia.

O que interessa é vender ao eleitor ilusão de que é possível obter dinheiro em troca do voto

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