‘O saber ancestral é valioso para bioeconomia’
Segundo o cientista, a sabedoria indígena pode impulsionar a economia amazônica
Em 1992, quando era membro da delegação oficial do Estado do Amazonas na cúpula de chefes de estado da ECO-92, Mario Christian Meyer já falava em um assunto pouco conhecido: a bioeconomia. Fundador do Programa Internacional de Salvaguarda da Amazônia para o Desenvolvimento Sustentável, o professor suíço-brasileiro, casado com a atriz Charlotte Rampling, acredita que está mais do que na hora de o Brasil e o mundo colocarem atenção necessária para promover esse tipo de investimento. “Torna-se urgente implementar a aliança entre as tecnologias dos países avançados e os saberes tradicionais dos povos da floresta que conhecem os ecossistemas e a biodiversidade locais. O modelo desta aliança já existe. Estamos com a faca e o queijo na mão: é suficiente saber cortá-lo de modo equitativo. Basta agir”, afirma. Abaixo, os melhores trechos da entrevista concedida de Paris, por e-mail, à repórter Marilia Neustein.
• Se o senhor pudesse fazer um raio X da situação do meio ambiente no Brasil hoje, quais pontos destacaria?
Questão complexa. Como cientista devo ater-me aos fatos, sem especulações que pulam nas mídias internacionais. O Brasil enfrenta desafios, que entendo serem mais de ordem conjuntural. É pioneiro na promoção da defesa do meio ambiente, tendo sediado a primeira conferência internacional no âmbito das Nações Unidas sobre o assunto, a Rio92, e foi ator decisivo da definição do conceito de desenvolvimento sustentável. O País tem uma das mais modernas legislações de defesa da preservação ambiental e é parte importante de convenções e acordos internacionais sobre a matéria, além de ter vasto potencial para o desenvolvimento da economia verde dentro da perspectiva da sustentabilidade.
• Mas o senhor acredita em uma nova proposta para lidar com esse assunto?
Como solução para os problemas atuais, todos os indicadores científico-tecnológicos e organizacionais demonstram que a principal medida para a proteção ambiental é a criação de uma nova bioeconomia equitativa e de alto valor agregado para que a conta de carbono seja realmente mínima.
• Quais são os desafios que o Brasil tem pela frente a curto, médio e longo prazo?
O principal desafio reside na implementação do seu arcabouço legal, doméstico e internacional. O Brasil também precisa reforçar sua capacidade de combate a queimadas, à exploração ilegal de madeira, ocupação ilegal de terras indígenas, garimpo... e à biopirataria que só beneficia laboratórios estrangeiros em detrimento da Amazônia e do capital verde nacional.
• Como fazer isso?
Estou seguro que é do interesse do País, inclusive em termos econômicos, a promoção do desenvolvimento sustentável, pois hoje graças à evolução da ciência, dispomos das tecnologias para proteção da natureza através da valorização econômica da biodiversidade. Outro desafio consiste em implementar medidas na estrita observância da “Política Nacional da Biodiversidade” e particularmente da “Política Nacional para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais”, bem como da “Política para o Desenvolvimento das Biotecnologias” a fim de que se faça valer a máxima de que uma árvore de pé vale mais do que uma árvore derrubada.
• Sobre a Amazônia o que podemos esperar nos próximos anos se a política não mudar?
Há hoje grande compromisso por parte de todos os países no apoio e na promoção da economia verde, sendo que as populações dos grandes mercados consumidores estão cada vez mais seletivas quanto à aquisição de produtos e privilegiam aqueles cujo processo produtivo seja sustentável.
• Não levar isso em conta pode ser problemático?
Sim, e também poderá tornar as exportações brasileiras de produtos do agronegócio passíveis de vulnerabilidades e até de retaliações comerciais. É capital que se materializa, por meio de projetos eco-etno-biotecnológicos. Os propósitos e metas do Conselho Nacional da Amazônia valorizam a biodiversidade em todas as suas vertentes – de forma equilibrada e contemplando os aspectos éticos pertinentes – para fomentar a implantação da nova e promissora bioeconomia.
• O presidente Bolsonaro fez discurso na ONU, defendendo as ações de seu governo e disse que é pró-meio ambiente. Trata-se de uma questão sensível, devido a um jogo complexo de interesses internacionais em diferentes níveis: econômico-financeiros, políticos, sociais que exigem uma análise muito realista, quase cínica. Sem esquecer a prioridade absoluta da preservação do meio ambiente para não deixarmos uma conta excessivamente alta a ser paga pelas futuras gerações.
• Existe interesse internacional nas riquezas naturais do Brasil? Efetivamente, as riquezas naturais da Amazônia são cobiçadas por muitos países participantes da reunião da ONU que devem encontrar um equilíbrio conjunto e integrado entre os imperativos econômicos – para assegurar sua competitividade internacional – e as exigências ambientais, para não decepcionar a vertente ecologista. É importante implementar com urgência a aliança entre as tecnologias dos países avançados – que proclamam respeito à natureza – e os saberes tradicionais dos povos da floresta que conhecem os ecossistemas e a biodiversidade locais. O modelo desta aliança já existe. Estamos com a faca e o queijo na mão: é suficiente saber cortá-lo de modo equitativo. Basta agir.
• O sr. já afirmou que é necessário olhar para a cultura ancestral indígena também como uma forma de ajuda no desenvolvimento de economias ligadas à floresta. O que falta para isso acontecer? É uma questão vital. Os saberes ancestrais são hoje reconhecidamente valiosos para a nova bioeconomia e a criação de empregos verdes. No contexto atual da pandemia, é importante não esquecermos a contribuição essencial de nossos indígenas da Amazônia para a saúde do ho- mem e, agora, para a luta contra a Covid-19, uma vez que a região oferece ao mundo princípios ativos fundamentais para o seu tratamento.
• E como é a melhor maneira de desenvolver e profissionalizar esse tipo e conhecimento? Olhando para preciosa economia do conhecimento que valorizará a bioeconomia. Lembremos que a Amazônia e os índios já legaram à ciência ocidental e à indústria muitos princípios ativos essenciais, a exemplo da guaranina, da emetina, artemisinina ou, ainda, como a pilocarpina, e o captopril, comercializados por dois dos cinco maiores laboratórios farmacêuticos do globo. Na Amazônia, certamente estão muitas respostas que a medicina precisa para curar os males que afligem a humanidade. Sem falar dos trilhões gerados pela borracha...
• Como ativar a bioeconomia? Para desenvolver essa bioeconomia salvadora na floresta devemos associar as biotecnologias verdes já disponíveis e conhecimentos ancestrais sobre os princípios ativos das plantas medicinais. A primeira garante a valorização da biodiversidade, e o segundo a bioprodução local, a fim de que parte significativa do lucro fique no Brasil.
• Por que acredita que a sustentabilidade e a preservação das florestas ainda não são uma questão prioritária para muitos governos no mundo?
Porque, lamentavelmente, eles ainda não compreenderam que a economia verde, associada ao desenvolvimento das inovações tecnológicas pode tornar-se em médio prazo tão competitiva, até mais do que as clássicas que são predadoras do patrimônio natural e dependentes das energias fósseis. A famosa globalização se concentra, infelizmente, nas reivindicações econômico-financeiras a curto prazo, deixando em segundo plano as urgências ambientais. Esse é o problema.
•E qual deve sera responsabilidade das empresas a caminho dessa sustentabilidade?
É essencial, pois sem valorização dos produtos e serviços da floresta não haverá preservação dos recursos naturais. Além da farmacologia, cosmética e nutracêutica, outras indústrias, como o turismo verde, podem beneficiar-se dos princípios ativos purificados pelas plataforma seco-etno biotecnológicas que servirão de base para a fabricação de produtos acabados de alto valor agregado. Por outro lado, até o agronegócio acabou se convencendo da necessidade de respeitar as diretivas do Acordo de Paris sobre as alterações climáticas.
RIQUEZAS DA AMAZÔNIA SÃO COBIÇADAS POR PAÍSES
• A ciência passa por uma crise de questionamentos nessa era da pós-verdade. Acredita que os cientistas deveriam repensar a forma como têm divulgado as informações? Devem ser menos herméticos para chegar à população? Desde os primórdios, a ciência evolui por ensaio e erro. A única diferença é que hoje a mídia – tradicional e das redes sociais – se tornou onipresente na difusão dos dados científicos preliminares por “peritos de ocasião”, antes mesmo que esses tenham sido confirmados pela ciência, oferecendo-nos um festival de hipóteses contraditórias. Além disso, muitos desses “especialistas” tomaram gosto em aparecer e passaram a adorar o papel de mocinhos da TV, o que resultou numa guerra de egos em prejuízo da verdadeira ciência.
• O que mais o senhor acrescentaria?
Para concluirmos com uma nota de esperança: considerando-se que a tecnologia já nos forneceu instrumentos suficientes que estão prontos para serem implementados. O objetivo é a valorização das riquezas naturais, que não só preservam como otimizam o meio ambiente. Não devemos mais perder tempo.