NOVO CENÁRIO EM BARCELONA
Com pontos turísticos esvaziados, cidade cria programas de visitação para moradores
Sexta-feira, 21 de agosto, 15h, calor de 30 graus no verão ibérico, alta estação turística. Uma cena inimaginável em tempos prépandêmicos se desenrola em Barcelona: a Praça da Catalunha lotada... de pombos. A exceção é uma mulher que aproveita o vento que refresca a tarde abafada enquanto pedala livremente em círculos pelo local, o que faz as aves voarem à medida que a bicicleta avança pelo chão de pedras lisas brancas e vermelhas. Essa mulher impactada pelo inédito vazio de pessoas, no caso, era eu.
Este vazio que presenciei na principal praça da cidade, antes constantemente povoada por turistas do mundo todo, ainda se faz presente em outros principais pontos turísticos, como a Rambla e o Bairro Gótico, que sofrem com o fechamento de estabelecimentos sem o volume de estrangeiros, que deixaram de visitar a cidade por causa da pandemia de covid-19. As filas nas atrações, os turistas com sacolas de compras e os dias agitados com o vai e vem de gente sumiram.
Para agravar o panorama, a chegada do frio trouxe a já esperada segunda onda da pandemia e medidas mais duras para conter o vírus foram adotadas nesta semana na cidade. Universidades voltaram às aulas online e o home office está sendo fortemente recomendado. Academias, teatros e cinemas seguem abertos, mas com 50% da capacidade. A cereja do bolo atingiu justamente um dos setores mais afetados com a paralisação do turismo.
Desde a meia-noite de sextafeira bares e restaurantes só podem abrir para entregas a domicílio ou comida para levar. O que se viu no dia anterior foi uma corrida de despedida aos bares e preocupação com a possibilidade de um novo confinamento total. Já durante o dia de sexta, com a população sem ter aonde ir para confraternizar e há muito sem turistas, a cidade voltou a estar visivelmente mais deserta.
“Sente-se falta dos estrangeiros. Vivíamos de turismo, da vida social, sempre houve muita vida aqui. Barcelona está irreconhecível, nunca vi a cidade assim na minha vida. É pior que um pesadelo”, resume a catalã Bárbara González, que nasceu e sempre viveu na cidade, atualmente moradora do central bairro Eixample, antigamente frequentado por hordas diárias de turistas.
Nessa nova realidade, cabe aos moradores tentar povoar os espaços da cidade. Iniciativas para incentivar o público local a movimentar de alguma forma pontos turísticos às moscas surgem em vários deles. E se for de graça, melhor. A Basílica da Sagrada Família, por exemplo, desde julho iniciou o projeto Hora Barcelona, que segue até dezembro.
No início de cada mês, o site oficial oferece gratuitamente aos moradores ingressos para todos os fins de semana do mês seguinte. Basta preencher um formulário no site, comprovar que mora na cidade e pronto. O incentivo para conhecer a obra-prima de Gaudí e economizar os 26 euros (R$ 172) da entrada em tempos de crise econômica vem dando resultado. A cada mês, os ingressos acabam horas depois de serem colocados à disposição.
O projeto se soma a outro da Basílica, que já existia antes da pandemia, o Portas Abertas. Também voltado aos locais, distribui entradas gratuitas por meio de um sorteio todos os anos, em setembro. A comunicação com o público deixa claro as medidas de prevenção à covid-19 tomadas pelo local, como o número reduzido de pessoas dentro do ambiente.
Bárbara é uma das moradoras da cidade que está aproveitando a oportunidade. “Não conheço a Sagrada Família e consegui os ingressos grátis para ir em outubro. Tenho mais vontade de conhecer agora porque com menos gente é bom para ir com a câmera e fazer fotos”, explica. Além da basílica, ela conta que está atenta às programações para conhecer outros pontos marcantes da cidade.
Katia Valera é outra catalã que comemora os ingressos que conseguiu. Natural de Tarragona, uma cidade vizinha, e moradora de Barcelona há seis anos, ela também visita a basílica este mês. “Fui há dois anos pagando e é caríssimo! Lembro que fiquei agoniada porque era verão e não cabia nem mais uma alma lá dentro de tão cheio”, lembra, ressaltando que agora tem mais vontade de passear por bairros turísticos por estarem mais vazios.
Além da basílica, ela programa um fim de semana pela cidade este mês, com as temperaturas mais amenas. “Quero fazer um walking tour principalmente pelo centro, pelo Gótico, rever a parte judia do bairro. Crescemos aqui, mas a história acaba se esquecendo. É bom voltar para relembrar e reviver outra vez”, diz.
Outra obra símbolo de Gaudí, a Casa Batló incentivou a ida de moradores assim que reabriu. Em julho e agosto, promoveu sorteios que davam ingressos grátis, bastava se inscrever no site para concorrer. Já a partir de outubro, o projeto Noites Mágicas, que inclui visita ao local e show de artistas majoritariamente catalães, oferece descontos de 10 euros (R$ 66) no ingresso não só para moradores da cidade, mas de toda Espanha, de olho no turismo interno.
Programações em locais abertos para manter o distanciamento e minimizar os riscos de contaminação, aliás, foram tendência durante todo o verão e devem se manter mesmo com a chegada do frio. “Minha ideia é seguir aproveitando a cidade, mas obviamente respeitando as medidas de segurança. Gostaria de ir ao Parque Güell e também fazer a trilha do (parque) Tibidabo até lá em cima. Sem turistas, com certeza será mais tranquilo”, diz o espanhol Alberto Rodilla, morador do bairro de Les Corts.
Novos hábitos. A redescoberta da cidade pelos moradores vem acontecendo não só em visitas a pontos turísticos, mas na própria escolha de onde viver. Antes raramente considerados, os bairros turísticos entraram no radar porque agora, além da calmaria, têm ofertas de bons apartamentos que, sem o fluxo de aluguel de temporada, passaram a oferecer contratos fixos. A mexicana Fernanda Méndez, moradora da cidade há um ano, mudou-se no meio da pandemia do Eixample para o Gótico, o mais turístico dos bairros turísticos.
“Quando cheguei estava tudo deserto, morto, em silêncio. Caminhava-se pelas ruas e não havia nada. E o Gótico já é frio, é de pedra, é gótico (risos). Acredito que as pessoas é que fazem ele ser mais caloroso”, conta a jovem, que presenciou a reabertura gradual do bairro e o novo dia a dia após o confinamento. “Foi emocionante ver como as cortinas e as portas que víamos fechadas, e não sabíamos o que havia por trás, foram se abrindo e aí descobríamos uma cafeteria, uma loja”, diz, destacando a mudança no perfil dos clientes antes estrangeiros e agora locais.
O que também se transformou foram os hábitos de locomoção entre os moradores. Com um extenso corredor de ciclovias de mais de 200 quilômetros e vasta malha de metrô, trem e ônibus, na saída do confinamento houve um incentivo ainda maior do poder público para que as pessoas evitassem o transporte coletivo, priorizando o transporte individual em bicicletas e a boa e velha caminhada.
Se durante os meses mais duros de confinamento o Bicing – serviço público de aluguel de bicicletas – foi paralisado, entre maio e julho ganhou 20 mil novas assinaturas, 77% mais do que no mesmo período do ano anterior. Com mensalidades anuais de 35 ou 50 euros (R$ 230 a R$ 330), o serviço vem crescendo exponencialmente e em julho bateu o recorde de viagens: 1,3 milhão, maior do que o mesmo mês do ano passado. Caminho inverso ao que acontece com o transporte coletivo, esvaziado pela falta de visitantes e por parte da população ainda em home office, que mantém uma média de lotação de 50% do que costumava ter antes da pandemia. ‘Tourist go home’. Muito provavelmente, os adeptos da campanha contra o turismo massificado que espalhavam pelos muros da cidade a mensagem “Tourist go home” (Turistas, vão para casa) nunca imaginaram que seu pedido seria atendido tão rápido e de forma tão brutal. A pandemia que encarcerou a cidade no dia 15 de março mandou os turistas para onde esse grupo queria que eles nunca tivessem saído e não há sinal no horizonte de que as massas retornem tão cedo.
Sem a vacina, o governo ainda encontra dificuldades em traçar uma meta concreta de quando, como, e se, o imenso impacto na economia será revertido, uma vez que 12% do PIB espanhol provinha de atividades turísticas. Em 2019 a Espanha recebeu 83.7 milhões de visitantes, segundo dados do Ministério de Indústria, Comércio e Turismo, quase o dobro de sua população.
Com 1,6 milhão de moradores, Barcelona abocanhou 12 milhões desses visitantes, que gastaram em média 195 euros (R$ 1.290) por dia, de acordo com dados divulgados pela Prefeitura no início deste ano. Os números tinham sido recordes e a expectativa era de que seguissem esse fluxo crescente. Seis meses depois, o sentimento que paira por toda a cidade é o mesmo da catalã Bárbara, que se pergunta: “Quando vai se recuperar tudo isso?”.
ATIVIDADE TURÍSTICA REPRESENTA 12% DO PIB ESPANHOL
Mudanças sutis na rotina. Além da visível falta de movimento pelas ruas, há mudanças que são percebidas em acontecimentos sutis que faziam parte do dia a dia. Não se ouve mais pelas ruas da cidade diversas línguas. Agora os ouvidos captam apenas espanhol, catalão e inglês, este último por causa dos trabalhadores estrangeiros. Até as vitrines sofreram o impacto dos idiomas. Se antes elas ostentavam anúncios em inglês, desde a reabertura o que mais se vê são mensagens em catalão. Vale tudo para atrair a atenção do cliente local.