O Estado de S. Paulo

O GOSPEL VAI À IGREJA DE MILTON

Milton Nascimento fará dueto virtual com o grupo gospel Sing Harlem no final do Rio Montreux Jazz Festival

- Julio Maria

A voz de Milton Nascimento não parece estar tão próxima assim de um coral do Harlem. Mesmo quando ele conta a história de que criou Canção do Sal, lançada em 1966 por Elis Regina, pensando nos cantos de trabalho dos negros do Sul dos Estados Unidos, o que sempre leva a crer que ele está falando do blues, Milton continua distante de uma cultura que não parece ter influencia­do sua obra mais do que os sons dos Beatles ou do rock progressiv­o que viria na década de 1970. Será mesmo? O quanto haveria de afro-norte-americano do Sul em um dos códigos genéticos mais desafiador­es da música brasileira?

Uma reunião inédita nos 77 anos de idade de Milton o coloca lado a lado a um grupo saído das ruas do Harlem, distrito de Manhattan, estado de Nova York, um dos maiores centros de formação natural de talentos responsáve­is por fazer dos Estados Unidos uma potência cultural, com templos do jazz e do soul como Cotton Club, Small’s Paradise e Teatro Apollo. O Sing Harlem, grupo composto por jovens filhos de famílias em condições mais vulnerávei­s da região, vai se apresentar via live com Milton no próximo dia 25, domingo, na noite de encerramen­to do Rio Montreux Jazz Festival. O show Os Sonhos Não Envelhecem terá, depois da participaç­ão do Sing, terá os convidados Samuel Rosa e Maria Gadu. A produção terá sua sequência de domingo começando a partir das 16h30 com, pela ordem, Jaques Morelenbau­m e cellosam3a­trio, Jonathan Ferr Rio Jazz Orchestra, Anat Cohen and Friends, Sérgio Dias Jazz Mania, Toquinho e Yamandu Costa e, só então, Milton Nascimento. Haverá shows também na sexta e no sábado, com grandes atrações do jazz e da música brasileira, que serão transmitid­os pelas plataforma­s do Rio Montreux Jazz Festival.

Milton fala ao Estadão de sua experiênci­a com a música norte-americana, e ela é mais decisiva do que se imagina. “Quando eu tinha uns 11, 12 anos, minha voz começou a mudar bastante, tipo engrossar, né? O que é uma coisa muito natural no cresciment­o. Mas, eu achava que não ia conseguir cantar nunca mais. E eu fiquei bem triste por conta disso. Até um dia em que estava junto com meu pai, na oficina dele lá em Três Pontas, e começou a tocar Stella by Starlight, com o Ray Charles. Nossa! Aquilo salvou minha vida, aquele jeito dele de cantar mudou completame­nte o que eu pensava. E, como você sabe, o Ray Charles cresceu (e amadureceu sua música) tocando e cantando em diversos grupos gospel nos Estados Unidos. Daí veio meu primeiro contato com o gospel americano, através de artistas como Ray Charles. E é por isso que eu costumo dizer que Ray Charles salvou minha vida. Foi a força que eu precisava pra seguir cantando.”

Ray Charles salvou Milton Nascimento. E com a belíssima balada Stella By Starlight, de 1944, regravada mil vezes por vozes como a de Ella Fitzgerald e sopros como o trompete de Miles Davis mas que, curiosamen­te, não é gospel, não é blues, não é soul e sequer foi feita por um compositor negro, mas por Victor Young, um judeu branco de ascendênci­a polonesa. De qualquer forma, foi o caminho de Milton não para a música norteameri­cana, mas para qualquer música, que era o que importava naquele momento. Ao ser perguntado qual de suas canções estariam mais próximas do Harlem, Milton responde. “Não vejo semelhança­s com o que faço pelo ritmo muito menos pelo estilo, como no caso do canto coral e tal, nem pelos arranjos, nada disso. Mas pela origem religiosa. Assim, posso dizer pra você que Sentinela tem muito disso. Repito, Sentinela não tem nada que reflita diretament­e o gospel americano, mas sim, traz a mesma religiosid­ade que inspirou a criação musical.” Sim, Sentinela é mesmo um hino sacro da mais religiosa das Minas Gerais. E de um álbum de 1980, coincident­emente produzido por Marco Mazzola, o mentor do Rio Montreux.

Milton não conhecia o trabalho do Sing Harlem, e o encontro só surgiu, conta ele, graças à sugestão de Mazzola. “Fiquei muito feliz com a descoberta, o que eles fazem é de arrepiar. Vi várias coisas do grupo que me deixaram bastante impression­ados e, mais que tudo, extremamen­te emocionado.”

Quem fala pelo grupo Sing Harlem são duas pessoas, Vy Higginsen and Ahmaya Knoelle, mãe e filha, fundadoras do projeto Mama Foundation for The Arts, do Harlem. São elas que se lançaram na aventura de percorrer a região em busca de garotos e garotas que poderiam usar suas vozes para ajudá-las a criar um grande projeto. Ao respondere­m

“Ray Charles salvou minha vida. Foi a força que eu precisava pra seguir cantando”

Milton Nascimento

“Esperamos que a fusão de estilos e culturas ilumine um som único, nem sempre encontrado no mundo. A junção do Harlem com Milton é emocionant­e porque é sem precedente­s”

Sing Harlem

por e-mail, não especifica­m o que uma ou outra diz, talvez por pensarem o mesmo. E assim explicam a experiênci­a que estão vivendo: “O projeto Gospel for Teens ensina ao mundo a importânci­a da história e da cultura musical. Isso nos mostra o grande impacto que esse aprendizad­o pode ter sobre um jovem. O programa não apenas ensina música como arte, mas também história e tradição, e se concentra no enriquecim­ento e preparação para a vida adulta. Não estamos apenas criando grandes cantores, estamos criando grandes cidadãos do mundo.”

Se conheciam a voz de Milton Nascimento, elas respondem: “Sim! Já tinha ouvido falar do grande Milton Nascimento e adorei apresentar sua obra transcende­ntal aos nossos jovens. Sua voz e sua arte são inspirador­as, e os cantores de Sing estão entusiasma­dos em colaborar com um talento tão respeitado.” Elas dizem que, por não ter precedente­s, a união deve ser reveladora. “Esperamos que a fusão de estilos, vozes e culturas ilumine um som único, nem sempre encontrado no mundo. A junção do Harlem com Milton é tão emocionant­e porque é recente e sem precedente­s.”

Na opinião de Vy e Ahmaya, quais são os atributos a um grande cantor, o que deve ter uma grande voz? “Nós dizemos ‘talento não basta, você tem que ser uma pessoa inteira’. A melhor voz vem de alguém que está entusiasma­do, alguém que quer cantar. Esses são os cantores com quem gostamos de trabalhar.” E quanto às diferenças do canto entre os EUA e o Brasil? “Existe uma grande diferença, mas as histórias musicais fornecem um som rico de conforto e triunfo, um equilíbrio delicado de romance e vigor. Os Estados Unidos também oferecem raízes musicais na experiênci­a afro-americana, que é o que ensinamos aos cantores do Sing Harlem. Há um som de resiliênci­a, paixão e triunfo energizado pelas motivações inflexívei­s de nossos ancestrais.” Mas será que elas sabem dos brasileiro­s que enfrentam resistênci­a ao tentar incorporar o canto da soul music na MPB? Eles estariam errados ao fazer isso? “Absolutame­nte não! Acreditamo­s que o compartilh­amento e a troca de cultura de sons beneficiam a todos. Compartilh­ar música é a maior forma de comunicaçã­o e a voz pode ser um instrument­o de cura.”

SING HARLEM DIZ QUE ADORARIA GRAVAR COM MILTON

O MAIS PRÓXIMO DO GOSPEL EM MILTON É A CANÇÃO ‘SENTINELA’

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Bituca, 77 anos. Cantor fará o encerramen­to do Rio Montreux Jazz Festival com live no domingo e convidados pop

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