Resultado deve esfriar relação La Paz-brasília
Maior preocupação do governo boliviano deve ser com assuntos internos, como crise econômica.
Avitória do ex-ministro da Economia Luís Arce, na Bolívia, sinaliza uma relação mais fria com o Brasil, com uma maior preocupação do governo boliviano com assuntos internos, como a pior crise econômica em 40 anos e a sociedade polarizada politicamente, dizem analistas ouvidos pelo Estadão.
“Acredito que haverá um governo muito menos amigável à gestão Bolsonaro”, diz Filipe Carvalho, da consultoria de risco político Eurasia, para quem a eleição de Arce indica um afastamento dos vizinhos. “Isso limita as chances de a Bolívia entrar no Mercosul, algo que o governo interino vinha tocando”, afirmou.
Carvalho disseque a preocupação do próximo presidente boliviano vai ser a política interna. “A Bolívia tem muitos desafios. É um cenário bem difícil política e economicamente. O MAS (Movimento ao Socialismo, partido de Arce e do ex-presidente Evo Morales) promoveu um boom econômico com commodities. A Bolívia, porém, já tinha um déficit público alto antes do coronavírus.”
Segundo ele, também não há perspectiva de demanda maior de gás natural, um dos produtos mais importantes para a balança comercial do país. Pelo lado político, Carvalho vê Arce como mais moderado que Evo e não deve fazer críticas abertas ou se alinhar ao governo de Nicolás Maduro, na Venezuela. “Ele é discreto.”
Apesar da amizade e da relação de longa data com Evo, analistas disseram que é cedo para prever como ele se comportaria na presidência. “Luís Arce parece ter uma capacidade mais conciliadora e menos radical”, afirma Miguel Borba de Sá, professor de relações internacionais da Universidade de Coimbra. Ele lembra que, no discurso da vitória, Arce falou em um governo de unidade nacional. “Não será um governo do seu partido e de correligionários. Parece que a estratégia neste momento é não apostar na polarização e sim na construção de pontes.”
Mas a aproximação com outros setores políticos nacionais tem limites. “Parece que Camacho (candidato da extrema direita com forte apoio em Santa Cruz de la Sierra) não terá muito espaço dentro dessa unidade nacional. Já os setores mais moderados, representados pelo Carlos Mesa, de centro-direita (segundo colocado nas eleições), podem ser incluídos no diálogo.” A construção da estabilidade, na visão de Borba de Sá, se deve à retomada de um modelo que nasceu na primeira vitória do partido, em 2005. “É um governo caracterizado como de esquerda radical, mas que não corresponde à realidade do que é o projeto do MAS, de conciliação de classes e etnias. Ele é vitorioso e hegemônico porque não é o mais radical.”
Para Carlos Eduardo Vidigal, pesquisador do Instituto de Relações Internacionais da UNB, o resultado mostra que as forças de oposição e a parte conservadora da sociedade boliviana não conseguiram estabilidade nem respaldo político. A presidente interina Jeanine Áñez tentou se viabilizar como candidata, mas desistiu. “A sociedade e a maioria do eleitorado não acompanharam as soluções políticas arbitrárias”, afirmou Vidigal. Embora Camacho tenha amplo apoio de empresários, inclusive do campo, também não obteve sustentação para se viabilizar nas urnas. “A vitória mostra a decisão da maior parte da sociedade boliviana de avançar na construção de um Estado multinacional, com a inclusão de indígenas, e uma distribuição de renda significativa, reconhecida inclusive pela ONU. Para o Brasil, essa eleição seria um fator de preocupação. Se olharmos os Estados que fazem fronteira com a Bolívia, são os Estados do agronegócio, que é o oposto à visão do MAS.”
Vidigal descarta, porém, comparações com outros governos de esquerda e rejeita a ideia de isolamento do Brasil. O pesquisador afirmou que o projeto dos políticos mais progressistas da Bolívia é tentar incluir – e não combater – o empresariado. “É um desenvolvimentismo com a inclusão das populações tradicionais que concilia os interesses das classes trabalhadoras, das comunidades indígenas e de um governo popular”, disse. Para o professor, a dúvida é até que ponto a oposição e o antigo governo realmente acatarão o resultado das urnas.