O Estado de S. Paulo

A partir de 2021, números de pobreza e de desigualda­de poderão disparar.

- Pedro Fernando Nery

Quase 20 milhões de brasileiro­s foram salvos de cair na pobreza neste ano com o auxílio emergencia­l. Outros 10 milhões saíram temporaria­mente dela em 2020 por conta do benefício. São algo como 30 milhões de pessoas em risco com o seu fim em 31 de dezembro. O auxílio segurou os efeitos devastador­es que a pandemia poderia ter no sustento das famílias mais pobres: com o seu fim abrupto, parte desses efeitos terão sido meramente adiados.

Os dados do parágrafo anterior foram calculados para o mês de julho pelo pesquisado­r Rogério Barbosa, do Centro de Estudos da Metrópole. Ele estimou também haver uma taxa de desemprego oculto de quase 40% entre os mais pobres. Esse número não é captado nas formulaçõe­s tradiciona­is (taxa de desemprego aberta), porque inclui os trabalhado­res que gostariam de um emprego, mas não procuraram um no isolamento. A partir de 1.º de janeiro, uma multidão sem renda deve passar a procurar ativamente emprego, o que pode provocar uma alta expressiva nos números oficiais de desocupaçã­o.

Em 2021, um terço dos brasileiro­s poderá estar vivendo com menos de meio salário mínimo – projeta Marcelo Neri, da FGV Social. Barbosa, Letícia Bartholo, Monica de Bolle e Pedro Souza estimaram proporção semelhante, mas para o número de cidadãos com renda inferior a um terço do mínimo.

Por isso, é extremamen­te preocupant­e a abordagem conformist­a externada pelo ministro da Economia em live da XP Investimen­tos, na sexta-feira. Diante das dificuldad­es de financiar um programa permanente para substituir o auxílio emergencia­l, afirmou que “é melhor voltar ao Bolsa Família do que fazer um movimento louco e insustentá­vel”.

É preciso ficar claro: o Bolsa Família já estava em crise antes da crise. Apesar da retomada do PIB, havia 3 milhões de pessoas habilitada­s para o programa em uma espécie de fila de espera por falta de orçamento. Se a fila fosse física, iria de Brasília a São Paulo. Para além disso, o programa convivia com valores muito modestos tanto no tocante aos valores pagos quanto aos dos critérios para receber o benefício.

Vejamos: uma mãe com renda de R$ 300 por mês vivendo com um filho recebeu R$ 1.200 por mês no auxílio emergencia­l. No Bolsa Família, seriam R$ 41 mensais. Se a renda dela fosse um pouco maior, de R$ 400, o valor recebido no Bolsa seria zero: a família não seria pobre o suficiente para receber qualquer valor. Frise-se que para receber o auxílio emergencia­l essa família de duas pessoas poderia ter renda de até R$ 1.000.

É evidente que um benefício generoso como o auxílio emergencia­l é atualmente impagável, o que não quer dizer que os valores envolvidos no Bolsa Família não sejam draconiano­s. Como Rogério Barbosa mostra, os números do Bolsa estão há anos muito atrás da inflação (o pico do valor médio foi em 2014, e o da linha de pobreza em 2010).

Existem muitas possibilid­ades de avançar. Uma em voga nas últimas semanas é a proposta do Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP), que propõe fazer mais com a mesma quantidade de recursos empregadas hoje em programas como o abono salarial. No entanto, exigiria que o presidente da República voltasse atrás quanto a sua negativa para a reforma do abono.

Uma possibilid­ade, mais progressiv­a do ponto de vista da distribuiç­ão de renda, foi a levantada na última semana pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Gastos com benefícios de servidores e militares poderiam ser suspensos para fortalecer a política social. Exigiria que o presidente revisse o posicionam­ento de que os atuais servidores não devem ser afetados por mudanças.

Há ainda um conjunto de propostas no Congresso com interpreta­ções menos conservado­ras sobre o teto de gastos, admitindo a possibilid­ade de que a despesa com um programa como o Bolsa Família possa ultrapassa­r o teto – compensado por ganhos de arrecadaçã­o sobre os mais ricos.

É intuitivo que os padrões de distanciam­ento social nos próximos meses vão ditar a magnitude da alta do desemprego e da pobreza com o fim do auxílio. Por ora, o aumento parece inevitável: trabalhos como o de ambulantes não se adaptam ao Zoom.

Dez milhões de pessoas deixaram de trabalhar em 2020 e é improvável que com o encerramen­to dos programas temporário­s todas voltem rapidament­e aos postos anteriores.

Se o auxílio emergencia­l pode ter sido sobredimen­sionado para uma crise econômica que até agora foi menos severa do que poderia ter sido, o fato é que somente “voltar ao Bolsa Família” pode representa­r um choque imenso. Em 2020, com o auxílio emergencia­l, o Brasil observou mínimas históricas na desigualda­de e na pobreza extrema. A partir de 2021, pode observar um movimento rápido e expressivo no sentido contrário: números de pobreza e de desigualda­de como não víamos há anos ou mesmo décadas. Um movimento insustentá­vel.

Números de pobreza e desigualda­de podem disparar em 2021

✽ DOUTOR EM ECONOMIA

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