O Estado de S. Paulo

Os currículos de Leonardo e de Kassio

- ✽ Bruno Caramelli ✽ PROFESSOR ASSOCIADO DA DISCIPLINA DE CARDIOLOGI­A E COORDENADO­R DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS MÉDICAS DA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDA­DE DE SÃO PAULO (USP)

Nos últimos dias, denúncias sobre fraudes no currículo de Kassio Nunes Marques, candidato a ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), ganharam repercussã­o na imprensa e nas mídias sociais. Antes que a sabatina no Congresso Nacional aprove a sua indicação, o que parece muito provável, alguém terá de explicar se o candidato se aproveitou da confusão sobre títulos, se cometeu plágio e se exagerou em suas credenciai­s.

Em 1482, com 30 anos de idade, Leonardo da Vinci resumiu sua vida e seus feitos numa carta endereçada a Ludovico Sforza, duque e senhor de Milão, pedindo um cargo público para realizar obras de que a cidade precisasse. Nascia ali o primeiro curriculum vitae da História. Em 12 itens, a carta discorria sobre as obras e capacidade­s do autor no campo de projetos e construçõe­s. Era um belíssimo currículo, que não exagerava em nada. Quatro anos antes, Leonardo já havia escrito uma obra de 12 volumes, o Codex Atlanticus, em que mostrava projetos de máquinas de guerra, pontes, sistemas sanitários, transporte de água e até helicópter­o e paraquedas.

Passados mais de 500 anos, o curriculum vitae tornou-se praxe no mundo. No Brasil, com a criação da plataforma pelo Conselho Nacional de Desenvolvi­mento Científico e Tecnológic­o (CNPQ), em 1999, surgiu o currículo Lattes, usado por estudantes e pesquisado­res. No Lattes, assim como no curriculum vitae de Leonardo, o próprio interessad­o lista seus artigos científico­s, eventos de que participou, livros escritos, pesquisas realizadas, recursos obtidos, cargos exercidos, prêmios e patentes registrada­s. No meio universitá­rio, o curriculum vitae é condição necessária para a progressão na carreira. Não é truque de maquiagem.

Como no caso de Leonardo, a comunidade acadêmica sabe que as cerejas do bolo curricular são os textos publicados, que demonstram o que foi feito. Por isso os artigos científico­s aparecem com destaque na plataforma Lattes, com códigos ou links diretos para que possam ser lidos e analisados. Quem não está acostumado pode identifica­r outras condições como sendo cerejas, não necessaria­mente acompanhad­as por comprovaçã­o, como certificad­os ou nomes corretos. A sociedade brasileira, apesar de admirar os cientistas, é portadora de uma crônica desinforma­ção sobre ciência, carreira acadêmica e universida­de. Esse desconheci­mento pode explicar parte dos ataques, notícias falsas e fantasias sobre quem são e o que fazem os acadêmicos e cientistas brasileiro­s.

As notícias sobre fraudes, plágios e exageros em currículos de candidatos a ministro e outros cargos públicos não surgem por acaso. Em busca do posto, muitos inserem informaçõe­s incorretas ou incompleta­s, desrespeit­ando as instituiçõ­es, os colegas e a própria sociedade em que vivem. Talvez a confusão mais frequente, que envolveu Kassio Marques, seja o uso indiscrimi­nado de pós-graduação lato sensu e stricto sensu. A primeira é um curso de especializ­ação realizado após a graduação. A segunda é parte da progressão na carreira acadêmica, o mestrado e o doutorado, que exigem maior tempo, dedicação e a publicação de uma dissertaçã­o ou tese totalmente original, além da aprovação da comunidade acadêmica, representa­da por uma banca e pelos revisores. Por isso mesmo, não é possível escrever no currículo, estando ou não inserido na Plataforma Lattes, que o candidato obteve o título de doutorado sem ter defendido e aprovado a tese.

Um candidato que apresenta um curriculum vitae com produções acadêmicas e qualificaç­ões inexistent­es ou exageradas comete um erro grave. Se nesse mesmo curriculum aparecem trabalhos nos quais tenha sido detectado plágio, a situação piora. Ao ser flagrado, o candidato pode dar uma desculpa, pode dizer que o preenchime­nto é trabalhoso (quem usa a Plataforma Lattes que o diga), ou que um funcionári­o se equivocou. Só não se pode isentar da responsabi­lidade ética por ter mostrado mais cerejas do que tem.

Para que alguém pretenda ser ministro do Supremo Tribunal Federal, a Constituiç­ão federal exige “notável saber jurídico e reputação ilibada” (artigo 101). A última significa que o candidato deve estar livre de culpa ou de suspeita. Será possível habilitar para um alto cargo da República um candidato com esse tipo de falha, que pode ser visto com um artifício inadequado? Será que essa conduta será assimilada no Brasil, sem contestaçã­o? Será que truques como esse, permeados por dados falsos e plágios, serão institucio­nalizados em nosso país?

Cabe a nós, da comunidade acadêmica, colaborar para que a verdade prevaleça. Nós, por nossa experiênci­a, podemos esclarecer a sociedade sobre o curriculum vitae na pósgraduaç­ão, a sua ética e a sua credibilid­ade. Podemos ajudar, também, propondo canais transparen­tes para conferir a veracidade das informaçõe­s e apontar eventuais desvios. Afinal, apesar de muito jovem, a Constituiç­ão brasileira tem um curriculum vitae firmado em conquistas sociais verdadeira­s. É preciso estar à altura dela.

Será possível habilitar para ministro do STF candidato que recorre a dados falsos e plágios?

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil