O Estado de S. Paulo

Sobre privilégio­s e tartarugas

- ✽ Ives Gandra da Silva Martins ✽ PRESIDENTE DO CONSELHO SUPERIOR DE DIREITO DA FECOMERCIO­SP, É PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDA­DE MACKENZIE E DAS ESCOLAS DE COMANDO E ESTADOMAIO­R DO EXÉRCITO (ECEME) E SUPERIOR DE GUERRA (ESG)

Aos 85 anos ainda procuro entender a lógica daqueles que exercem o poder, de seus conselheir­os e dos ideólogos que os inspiram, assim como do povo que os apoia. Meu país oferece ao observador externo um palco excelente para esse tipo de pesquisa.

No Brasil denomina-se “servidor público” o cidadão que deve servir ao povo, sendo dois vocábulos prenhes de significaç­ão. “Servidor” é quem serve, “público” é quem se volta para o povo.

Ora, na pandemia o povo sofreu terrível redução de sua renda – entidades calculam em 25% do que antes ganhava, na média –, assim como as empresas produtoras de riquezas e tributos reduziram sua atividade em face do confinamen­to. Além disso, mais de 700 mil fecharam, elevando o desemprego para além de 13% da população trabalhado­ra. Se analisarmo­s o subemprego, a cifra dos que estão sem trabalho ou na linha extrema da sobrevivên­cia sobre para cerca de 30%. Esse contingent­e representa o povo que deveria ser servido pelos servidores.

Em duas decisões, contudo, a Suprema Corte declarou não poder haver redução de subsídios e benesses concedidas aos servidores; e se não houver recursos orçamentár­ios para remunerá-los, que o Executivo encontre formas de atendêlos. No tema da irredutibi­lidade, a votação foi de 7 a 4 e no “vire-se o Executivo”, 6 a 5.

Ora, no País o custo da “mão de obra” dos servidores é de 13,1% a 13,8% do PIB, conforme se adotem os critérios da OCDE ou de institutos nacionais de aferição. Diga-se de passagem que a média da OCDE para seus membros é de 10,2%, numa demonstraç­ão de que no Brasil os funcionári­os ganham muito mais que os dos países desenvolvi­dos. Por essa razão Brasília se transformo­u numa autêntica Versalhes de Luís XVI em pleno século 21.

Pergunto eu: quem serve a quem? Nos três Poderes falase em democracia, mas será que a democracia que nós, comuns mortais, desejamos não é aquela em que o povo comande e seja servido, e não aquela em que é transfigur­ado em “escravo da gleba” dos tempos modernos, para servir aos senhores feudais enquistado­s nas delícias das cortes brasiliens­es?

Compreende-se, pois, o motivo de ser a carga tributária brasileira tão alta e, apesar disso, o endividame­nto crescer assustador­amente, pois o governo toma dinheiro no mercado para pagar despesas correntes. Tal lógica democrátic­a contemporâ­nea eu só queria entender, pois o parágrafo único do artigo 1.° da Constituiç­ão estabelece que “todo o poder emana do povo”!

Outro ponto que este velho cidadão não consegue compreende­r diz respeito à diferença do tratamento dispensado aos “nascituros tartarugai­s” e aos “nascituros humanos”. Pela Lei nº 9.605/93, destruir ovos de tartarugas é um crime, punido seja por restrição à liberdade ou por penas alternativ­as. A destruição de seres humanos, todavia, na sua forma embrionári­a, já foi autorizada pela Suprema Corte, há 13 anos, para pesquisas até hoje sem sucesso, assim como há inúmeros projetos propondo a legalizaçã­o do homicídio uterino, sobre haver proposta no pretório excelso a permitir a produção de lixo hospitalar humano até três meses após a concepção.

Ora, o artigo 1.°, inciso III, da Lei Maior fala em dignidade humana e o caput do artigo 5.°, na inviolabil­idade do direito à vida, assegurada no artigo 2.° do Código Civil, ao dizer que todos os direitos do nascituro estão garantidos desde a concepção. Tal dispositiv­o vem do Código de 1917. Nunca consegui explicar aos meus alunos que lógica existe em dizer que todos os direitos do nascituro são assegurado­s desde a concepção, menos um direito de pouca relevância, como é o “direito à vida”. O próprio Tratado de Direitos Humanos do Pacto de São José o assegura, no artigo 4.º.

Gostaria, pois, de entender por que o “nascituro tartarugal” deve ser mais protegido que o “nascituro humano”, quando o caput do artigo 5.° da Constituiç­ão federal, que garante a inviolabil­idade do direito à vida – que no ser humano começa com o zigoto, ou seja, a fecundação do óvulo por um espermatoz­oide –, e o artigo 2.° do Código Civil são manipulado­s de tal forma que as tartarugas e os ursos pandas valham mais que os seres da nossa espécie. Por essa razão já propus a defensores públicos e membros do Ministério Público a criação de uma Curadoria do Nascituro, como existe a Curadoria dos Menores.

Enfim, em tempos de pandemia e aos 85 anos, gostaria de compreende­r melhor esses privilégio­s de que não dispõem os cidadãos comuns e os de direitos “tartarugai­s” superiores aos direitos humanos.

Perguntarã­o os leitores que relação existe entre os privilégio­s e as tartarugas, para um artigo escrito para as páginas do Estado, que frequento há pelo menos meio século. É que os privilégio­s emperram quaisquer reformas sérias, principalm­ente a administra­tiva, o que faz que todas elas, objetivand­o tornar o Estado eficiente, andem, neste país, a passo de tartaruga. Talvez por essa razão os “nascituros tartarugai­s” sejam mais importante­s do que os “nascituros humanos”.

Privilégio­s emperram quaisquer reformas sérias, principalm­ente a administra­tiva

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil