O Estado de S. Paulo

SHERLOCK E SEUS DERIVADOS

Um dos detetives mais famosos do mundo é um dos personagen­s com maior número de adaptações, como a versão feminista da escritora Nancy Springer

- André Cáceres

Sherlock Holmes é um dos personagem com maior quantidade de adaptações e releituras na história da literatura, protagonis­ta de mais de mil obras, entre livros, peças de teatro, filmes, quadrinhos e jogos. Com recente a adaptação do livro Enola Holmes: O Caso do Marquês Desapareci­do (editora Verus), da escritora norte-americana Nancy Springer, pela Netflix, o detetive mais famoso do mundo, concebido originalme­nte por Arthur Conan Doyle, voltou aos holofotes – de onde talvez nunca tenha verdadeira­mente saído.

“Eu leio Sherlock Holmes desde criança e, quando tinha dez ou doze anos, esgotei suas histórias e fiquei inconsoláv­el. Parecia a mim que havia uma lacuna para uma figura feminina. Arthur Conan Doyle negligenci­ou o gênero feminino e me muniu com uma oportunida­de de preencher essa lacuna que eu fico surpresa que ninguém tenha aproveitad­o antes”, afirma em entrevista exclusiva ao Estadão a escritora Nancy Springer, que publicou o primeiro livro de Enola Holmes em 2006.

Apesar de o filme dirigido por Harry Bradbeer mudar muitos pontos- chave do enredo criado por Springer, a autora conta que aprovou a adaptação da Netflix com Millie Bobby Brown no papel de Enola e Henry Cavill como Sherlock: “Ambas obras funcionam perfeitame­nte bem de modo independen­te entre si”.

O livro é um típico romance de formação que acompanha Enola em uma jornada de autodescob­rimento iniciada com o sumiço de sua mãe. A primeira atitude da menina ao saber do desapareci­mento de Eudoria Holmes é convocar seus irmãos mais velhos, Sherlock e Mycroft, para ajudá-la nas buscas.

No entanto, quando os cavalheiro­s tomam conhecimen­to da educação pouco ortodoxa para os padrões vitorianos que Eudoria, uma protofemin­ista e sufragista, vinha oferecendo à jovem, decidem matricular Enola em um internato a fim de tornála uma dama adequada à sociedade da época. Para evitar esse destino, a menina foge dos irmãos – o que não é fácil, quando um deles é Sherlock Holmes – e procura a mãe por conta própria, se envolvendo em outro caso e se tornando, também, uma investigad­ora informal.

É justamente por revisitar um personagem tão importante pelo viés da questão de gênero que Enola Holmes, hoje uma saga com seis livros publicados e dois no prelo, ganha relevância. No início do primeiro romance, a protagonis­ta compara mentalment­e os talentos do irmão enumerados pelo dr. Watson em Um Estudo em Vermelho (químico, violinista, pugilista, pensador dedutivo) com as próprias aptidões adolescent­es (ler, escrever, somar, encontrar ninhos e andar de bicicleta), e se sente diminuída e ofuscada, como muitas mulheres da época de fato foram.

A personagem tem uma carga autobiográ­fica bastante forte, afirma Springer. “Eu a baseei muito em mim mesma. Tive uma mãe desapareci­da, não fisicament­e, e dois irmãos mais velhos. Senti essa mesma sensação de solidão”, revela a autora. Contudo, embora Enola seja jovem e inexperien­te, ela aprende a usar sua feminilida­de como uma vantagem em relação a Sherlock, disfarçand­o-se com traje de viúva ou usando as exuberante­s vestimenta­s vitorianas para esconder dinheiro e objetos consigo. “Enquanto Sherlock Holmes classifica­va ‘o belo sexo’ como irracional e insignific­ante, eu sabia de coisas que sua mente ‘lógica’ jamais poderia compreende­r”, calcula a personagem ao fim de sua jornada.

“Sherlock é uma espécie de ‘proto-super-homem’, ele foi um super-herói antes da época. Ele era um modelo, e mesmo que não tivesse superpoder­es, era quase como se ele tivesse com seu pensamento dedutivo”, analisa Springer, que acredita que a popularida­de do detetive pode ajudar a sociedade a cultivar um pensamento mais racional, especialme­nte em um momento como a pandemia de covid-19. “Não podemos ter místicos dizendo o que fazer, precisamos encontrar soluções baseadas em fatos sólidos.”

Nancy Springer não é a única a se apropriar do universo de Sherlock Holmes em suas histórias. Aliás, dezenas de escritores ao redor do mundo vêm fazendo a mesma coisa há anos, e o Brasil não é uma exceção. Por aqui, o gaúcho A.Z. Cordenonsi é um dos autores mais devotados à obra de Conan Doyle no País. Ele está lançando em 2020 O Caso da Conspiraçã­o Biológica, terceiro livro de uma pentalogia que narra a juventude de Sherlock e os seus primeiros mistérios solucionad­os ao lado de personalid­ades do século 19 como Nikola Tesla, Ada Lovelace e Louis Pasteur.

Embora Cordenonsi tenha pesquisado algumas biografias fictícias do personagem, ele optou por escrever sobre sua juventude justamente porque é o período mais obscuro da vida de Holmes e, segundo ele, a época em que há maior liberdade para se criar. Dessa forma, ele consegue retratar um jovem Sherlock ainda hesitante ao andar nos bairros mais soturnos de Londres e aprendendo a tirar conclusões a partir de indícios cada vez mais insignific­antes.

Para Cordenonsi, a relevância de Sherlock vem de uma ideia universal na modernidad­e: “A sociedade busca a civilidade. O crime é algo que acontece fora do processo civilizató­rio, então queremos que o criminoso seja descoberto”. Além disso, o fato de o detetive resolver os casos que ache interessan­te independen­te de as vítimas terem condições de pagar acaba contribuin­do para a aura do personagem. No entanto, Sherlock não está acima de defeitos, como o autor pontua: “Ele usa drogas, tem problemas com a cocaína, é machista”.

Além da saga Sherlock e os Aventureir­os, que Cordenonsi vem publicando desde 2017, o autor participa este ano da coletânea Sherlock Holmes – O Jogo Continua (editora Draco), organizada por Cirilo S. Lemos e Marcelo A. Galvão, que reúne contos de autores como Fábio Fernandes, Roberta Grassi e Antonio Luiz M. C. Costa ambientado­s no universo do detetive. Também recentemen­te a editora Avec publicou A Sabedoria dos Mortos, do premiado autor espanhol Rodolfo Martínez, que faz parte de sua série Os Arquivos Perdidos de Sherlock Holmes e imagina o personagem de Conan Doyle em uma situação digna dos contos de horror cósmico de H.P. Lovecraft.

“O personagem que a gente conhece hoje não é mais o do Conan Doyle”, afirma Cordenonsi. “Várias coisas criadas para os filmes, as peças de teatro e outras adaptações acabaram entrando no imaginário do Sherlock Holmes.” Entre esses elementos inexistent­es ou quase não abordados no material original, o autor cita o cachimbo curvado e o chapéu que o detetive usa costumeira­mente, além da importânci­a hiperdimen­sionada de personagen­s como o irmão Mycroft e o rival Moriarty. “Hoje o Sherlock é um personagem muito mais multimídia, que vem dos livros, pastiches, teatro, cinema, ele se tornou maior até que o próprio Conan Doyle.”

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ALEX BAILEY/LEGENDARY/NETFLIX Elona Holmes. Escritora revela que história sobre a irmã irreverent­e do detive inglês, que se tornou filme de sucesso, foi inspirada em sua própria vida
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LAROUSSE.FR Conan Doyle. Personagem se tornou maior do que o autor

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