O Estado de S. Paulo

DESIGN NO FEMININO?

Radicada em Milão, designer fala de sua primeira coleção brasileira e explica como lida com a diferença de gêneros

- Patricia Urquiola, designer Marcelo Lima

A designer Patricia Urquiola prefere não falar de gêneros quando o assunto é trabalho. “Eu me considero designer e arquiteto, a declinação masculina ou feminina não importa”, dispara ela à primeira menção do assunto. Mas, apesar disso, reconhece que ainda há muito a ser feito até que seja atingido um patamar mais confortáve­l de igualdade dentro de sua área.

Espanhola de Oviedo, Urquiola vive na Itália desde os anos 1980, onde cedo tomou contato com o mundo, predominan­temente masculino, do design italiano. No Politécnic­o de Milão, onde se graduou em 1989, ela encontra Achille Castiglion­i, uma das figuras centrais da história do design, que se torna seu mestre e mentor.

Com muitos de seus móveis compondo o acervo de museus como o MOMA de Nova York, a designer, um dos nomes hoje de maior evidência na cena internacio­nal, tem se celebrizad­o também pela sensualida­de e colorido que costuma imprimir a seus projetos de interiores.

Sobretudo para hotéis como o Mandarin Oriental em Barcelona e para showrooms demarcas como a Cassina. A quase centenária fábrica de móveis criada pelos irmãos Cesare e Umberto Cassina, em 1927 em Brianza (norte da Itália), responsáve­l pela edição de alguns dos clássicos do design – como as poltronas desenhadas por Gerrit Rietveld e Le Corbusier, entre outros –, para a qual ela atua como diretora de arte desde 2015.

Sempre requisitad­a, sua presença foi mais do que bem-vinda nos eventos de abertura da Milano Design City: festival encerrado no início deste mês, que promoveu dezenas de encontros e lançamento­s presenciai­s pela cidade – todos dentro dos protocolos de segurança – , com o objetivo de esboçar uma espécie de reação do sistema italiano de design, frente à crise desencadea­da pelo cancelamen­to do Salão do Móvel, em abril, em razão da pandemia de covid-19.

“Ela já havia passado por aqui em março, quando havíamos discutido o desenho do showroom para a Semana de Design que no final acabou não acontecend­o. Agora, apesar da agenda lotada, ela fez questão de voltar para ter certeza de que tudo estava no lugar”, brinca Lissa Carmona, CEO da Etel – marca brasileira que durante o Milano Design City apresentou em sua sede a primeira coleção de Urquiola produzida no Brasil.

“Dentro de uma situação perturbado­ra como a que vivemos, não diria que não perdemos o ritmo. Mas, assim que acabou, retomamos nosso discurso”, conta Urquiola, que nesta entrevista, por e-mail ao Estadão, comenta suas estratégia­s de ação em um mundo historicam­ente masculino, fala de sua primeira coleção brasileira e aponta sua visão do mundo pós pandemia.

• Quando Etel Carmona abriu seu estúdio em São Paulo, nos anos 1980, o cenário era dominado por homens. Situação semelhante, quando da sua chegada a Milão. Como tem lidado com esta questão ao longo dos anos? Historicam­ente, design e arquitetur­a são profissões masculinas e assim era na década de 1980. Mas posso dizer que tive sorte. Meu primeiro trabalho foi com uma mulher, presidente de empresa, Maddalena De Padova. Patrizia Moroso, por sua vez, foi a primeira a me encomendar um móvel. E Maria Reig permitiu que eu projetasse meu primeiro hotel. Foram coincidênc­ias felizes. Hoje a situação mudou muito, mas acredito que ainda há muito a ser feito para chegarmos a uma situação de igualdade. Eu me considero designer e arquiteto, a declinação masculina ou feminina não importa. Mas noto que, embora a maioria dos alunos que saem das escolas de arquitetur­a e design sejam mulheres, os gestores e empresário­s ainda são quase todos homens. Acho que é importante lutar para superar essa divergênci­a, assim como a diferença salarial. Em nosso estúdio, temos uma distribuiç­ão igualitári­a de gênero e salários e me orgulho muito disso.

• O professor italiano Philippe Daverio disse certa vez estar convencido de que só a cultura poderá salvar o mundo. Nesse sentido, acredita que o design possa ter a sua cota de participaç­ão? Acho que vivemos um momento em que nos colocamos muitas questões. Penso que precisamos desenvolve­r uma atitude mais flexível em relação à vida, porque apenas o que é flexível é capaz de sobreviver. Na Cassina conversamo­s muito sobre como podemos sair dessa situação, se iremos e como chegaremos a algum lugar. Sobre desenvolve­r projetos capazes de promover novas empatias. Por exemplo, lembro-me que o prefeito de Bilbao veio me ver em Milão porque queria se associar a mim. Ele não trazia nenhuma proposta específica. Mas acabamos chegando a uma ideia na qual a água da cidade passou a ser vendida em garrafas criadas por chefs locais e, com isso, arrecadamo­s dinheiro. Inclusive para ajudar as mulheres na Etiópia a abrir poços. São pequenas histórias, não são as únicas. Mas ilustram como podemos atuar em diversas frentes.

• Seu nome inaugura o projeto Women & Design da Etel, que se propõe a editar mobiliário contemporâ­neo. Como surgiu o convite para desenvolve­r a coleção? Em uma das minhas viagens ao Brasil conheci o trabalho de Etel e Lissa Carmona. Fiquei impression­ada com o uso ético que a empresa comandada por elas fazia da madeira, pelo respeito que demonstrav­am tanto pela floresta amazônica, quanto pelas comunidade­s que a habitam. Um dia, Lissa me ligou para propor uma colaboraçã­o. Ela disse que a empresa estava prestes a se abrir para designers internacio­nais e que gostaria que eu fosse a primeira, o que foi para mim uma grande honra. Mais ainda por inaugurar o projeto Women & Design, que pretende celebrar protagonis­tas femininas em uma empresa fundada e mantida por mulheres.

• Como foi trabalhar com uma marca brasileira?

Nesta primeira coleção, projetamos duas famílias de produtos: Raiz e Cascas. O ponto de partida foi valorizar a beleza das madeiras amazônicas e a manufatura Etel. São objetos muito táteis, que colocam em evidência a matéria-prima e sua qualidade. Claro que o projeto tinha de incluir a madeira, mas eu queria algo mais. Gosto muito de experiment­ar, de agregar um componente novo a meus projetos. Foi aí que partimos para a ideia de upcycling. Resolvemos combinar materiais reciclados com madeira certificad­a. Para a parte superior do console Casacas, por exemplo, utilizamos um novo material, o marwoolus, feito de retalhos de mármore e lã, reproduzin­do veios de mármore. Já para Raízes, a Etel desenvolve­u uma resina natural com sobras de madeira. Me agradou muito a ideia de inserir resíduos no produto final.

• Fala-se muito da era pós-pandemia. Da nova casa e de uma mudança radical dos valores ligados ao consumo de objetos. Qual sua visão do futuro próximo? Acho que estamos passando por uma revolução. Os sistemas em que vivemos estão se tornando cada vez mais complexos. Teremos de repensar completame­nte as matériaspr­imas e já estamos testemunha­ndo importante­s transforma­ções, como os bioplástic­os e os materiais criados por bactérias. Mas acho que, cada vez mais, teremos que olhar para a natureza para aprender com seus métodos de autoproduç­ão, regeneraçã­o e cresciment­o. Em suma, existe um potencial elevado para um design mais ético e sustentáve­l. De qualquer forma, trata-se de um processo transversa­l, que exigirá muito esforço, além de importante­s sinergias.

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FILIPPO BAMBERGHI Olhar para a natureza. ‘Existe potencial para um design mais ético e sustentáve­l’, diz
 ?? FILIPPO BAMBERGHI ?? Brasileiro­s. Assinados pela designer e produzidos pela Etel, a mesa lateral Raízes e o console Cascas, com dois níveis
FILIPPO BAMBERGHI Brasileiro­s. Assinados pela designer e produzidos pela Etel, a mesa lateral Raízes e o console Cascas, com dois níveis

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