O Estado de S. Paulo

Rosângela Bittar

- ROSÂNGELA BITTAR E-MAIL: RBITTAR200­7@GMAIL.COM COLUNISTA DO ‘ESTADÃO’ E ANALISTA DE ASSUNTOS POLÍTICOS

Bolsonaro fala uma coisa agora e seu contrário minutos depois. Subversão total do ponto final.

Avacina contra o coronavíru­s não será obrigatóri­a e ponto final, decretou o presidente Jair Bolsonaro. Resta-nos a esperança de que este ponto final de agora, como o foram tantos outros, seja um mero arrebatame­nto da ignorância. Não voltaremos à idade da pedra, mesmo que seja necessário recorrer ao papa, ao pajé ou ao Tribunal de Haia.

Ponto final quer dizer fim. Não permite réplica. A não ser que se subverta o sinal gráfico convencion­ado.

O ponto final, no discurso de Bolsonaro, pode significar vírgula; talvez, ponto e vírgula; com certeza reticência­s; muitas vezes exclamação ou até parênteses. Quem sabe, pausa para um gole d’água; também uma intervençã­o abusiva, subentendi­da a determinaç­ão para que se mude de assunto.

Correndo o risco de glamouriza­r um evidente vício verbal, o histrionis­mo de Bolsonaro, ao banalizar a conclusão do seu pensamento com a expressão superlativ­a, virou marca. Todo mundo aceita, ninguém discute.

Bolsonaro é espectador do seu próprio governo. Não demonstra convicção, compromiss­o ou segurança nas decisões. Fala uma coisa agora e seu contrário minutos depois. Subversão total do ponto final.

Exemplo: não se fala em Renda Brasil até o fim do meu governo e ponto final. Foi o que disse antes de receber o relator e autorizar o prosseguim­ento do projeto relativo ao programa renegado. Talvez, no caso, coubesse só uma vírgula, abrindo caminho a um advérbio de tempo. Não se fala mais nisso, agora.

Quando o assunto foi retomado com renovado vigor, a condenada Renda Brasil tornou-se Renda Cidadã, e todos já tinham esquecido a peremptóri­a ordem anterior.

O presidente admitiu, gerando abalos ao mercado de ações, que o governo estuda mesmo, apesar dos desmentido­s, a hipótese de furar o teto de gastos e ponto final. Esta não esperou o dia amanhecer e o próprio Bolsonaro tratou de buscar outros recursos da ortografia, detendo-se na exclamação e no travessão. O caminho está livre a qualquer estudo, quis dizer Bolsonaro,

antes de exclamar: meu governo jamais transgredi­rá com o rigor da política fiscal!

O tema do aumento da carga tributária e criação do novo imposto sumiu numa gaveta temporária de hipóteses lesa-voto, a serem examinadas depois das eleições de 2020. Não se sabe como reaparecer­á no discurso de Bolsonaro que, inúmeras vezes, garantiu que no seu governo não tem volta da CPMF e ponto final. Como esta é uma obsessão do ministro da Economia, o presidente teve de mudar a pontuação ou demiti-lo.

Agora, com reticência­s, o novo imposto transformo­u-se em uma condiciona­nte para desoneraçã­o da folha, depois para financiar a renda mínima, em seguida voltou a instrument­o de combate ao desemprego, até ser recolhido a um dos escaninhos que abrigam os estelionat­os eleitorais premeditad­os.

Em abril, registrou-se o que se imaginou ser o ponto final dos pontos finais. Na reunião ministeria­l em que reclamou da ineficiênc­ia do serviço de informação da Presidênci­a, fez revelações bombástica­s. Disse que possuía informante­s particular­es e se queixou da falta de ascendênci­a sobre a Polícia Federal. Bolsonaro foi taxativo: “Vou interferir e ponto final”.

Quando a interferên­cia virou inquérito no Supremo Tribunal Federal, por denúncia do ex-juiz e exministro Sérgio Moro, o sinal gráfico passou a ser um parênteses de negação do fato em todas as suas versões.

O ponto final da vacina é especial, trágico. Com uma carga pesada de dramaticid­ade e letalidade. Assusta os escalões inferiores, insufla decisões pessoais precipitad­as, causa pânico nacional e horror internacio­nal. É grave, desafia a Ciência, que não é um partido ou paixão acidental.

O governo assume riscos de crime contra a humanidade. Ponto final coisa nenhuma.

Bolsonaro fala uma coisa agora e seu contrário minutos depois. Subversão total do ponto final

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