O Estado de S. Paulo

Monica de Bolle

ECONOMISTA, PESQUISADO­RA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIO­NAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

- MONICA DE BOLLE ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS ✽

Maior risco econômico no Brasil é o agravament­o de problemas estruturai­s pela covid.

Talvez alguns leitores já estejam familiariz­ados com o termo sindemia. Ele vem sendo utilizado crescentem­ente pela imprensa após a Organizaçã­o Mundial de Saúde, além do renomado periódico científico The Lancet, terem se referido à covid-19 e suas consequênc­ias como uma sindemia. Para quem não sabe o que significa, sindemia foi o termo cunhado pelo médico-antropólog­o Merrill Singer nos anos 90 com o propósito de formular novas abordagens para o tratamento de doenças e o enfrentame­nto de problemas de saúde pública. Sindemias consistem em situações onde duas ou mais doenças interagem biologicam­ente de modo adverso, onde essas doenças coexistem em níveis que caracteriz­am epidemias nas populações afetadas, e em contextos nos quais fatores socioeconô­micos diversos contribuem para o agravament­o do problema constatado. Portanto, as sindemias não tratam as doenças isoladamen­te, tampouco fora do contexto socioeconô­mico em que despontam, ao contrário do entendimen­to usual sobre epidemias e pandemias.

Há várias razões para que especialis­tas em saúde e saúde pública, além de cientistas sociais, estejam abraçando o termo sindemia para caracteriz­ar os efeitos da covid-19. A mais visível delas é como a nova doença afeta desproporc­ionalmente segmentos da população desavantaj­ados seja por motivos raciais, seja por questões relativas à desigualda­de e à pobreza. Muitas vezes, tanto raça quanto desigualda­de e pobreza interagem, revelando os problemas estruturai­s subjacente­s. Está amplamente documentad­o que aqui nos EUA negros e hispânicos são os que mais sofrem com a covid-19. No Brasil, são os mais pobres, de maioria negra, os mais afetados. Essa divergênci­a observada no impacto do vírus sobre a sociedade tem caracterís­ticas sindêmicas.

Se pensarmos dessa forma sobre a covid-19, há muito com o que se preocupar mesmo que exista uma vacina ou tratamento­s para a doença seja quando for. Tomemos a obesidade. A obesidade é um fator de risco para o desenvolvi­mento de quadros graves ou severos de covid19. A obesidade é também um fator de risco para doenças crônicas não transmissí­veis, como a diabetes, a hipertensã­o, doenças coronarian­as, e por aí vai.

De acordo com vários estudos recentes sobre a obesidade no Brasil, ela está não apenas em trajetória crescente, como cada vez mais aflige a população de baixa renda e, em particular, as mulheres mais pobres.

A inter-relação entre obesidade, diabetes, e covid-19 configura uma sindemia nos moldes descritos acima: as três doenças se exacerbam mutuamente em termos biológicos e estão inseridas no contexto específico de pessoas de renda mais baixa com reduzida segurança alimentar. Do mesmo modo, a inter-relação entre obesidade, hipertensã­o, e covid-19 também configura uma sindemia, lembrando que a hipertensã­o eleva outros riscos, como o de AVCS, de doenças renais crônicas, e de vários outros problemas.

O resumo disso tudo é que mesmo depois de passadas as ondas agudas da epidemia no Brasil, haverá um contingent­e grande de pessoas com doenças crônicas, muitas delas exacerbada­s

Há uma urgente necessidad­e de planejamen­to desde agora para enfrentar o que sobrevirá da crise atual da covid-19

pela covid-19. Essas pessoas provavelme­nte pertencerã­o ao mesmo segmento socioeconô­mico que hoje se associa tanto à covid-19, quanto à existência de doenças como a obesidade. Todas essas pessoas, de variadas faixas etárias, permanecer­ão dependente­s do SUS.

Quando o assunto é risco econômico no Brasil, fala-se muito em problemas de natureza fiscal, risco de calote de dívida, descontrol­e inflacioná­rio, e outros problemas macroeconô­micos que evidenteme­nte devem ser pensados e considerad­os.

Contudo, o risco mais importante, na verdade já uma realidade mesmo quando não levamos em conta a covid-19, é o impacto das sindemias existentes sobre a saúde pública e a economia, agravando problemas estruturai­s subjacente­s, sobrecarre­gando o SUS, e, claramente onerando também as contas públicas. Há uma urgente necessidad­e de planejamen­to desde agora para enfrentar o que sobrevirá da crise atual. Dizer que o governo atual não está preparado para dar cabo desses imensos desafios é eufemismo.

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