O Estado de S. Paulo

Igualdade ou desigualda­de?

ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDA­DE DE SÃO PAULO, FOI MINISTRO DO STF

- ✽ Eros Roberto Grau ✽

OMagazine Luiza recentemen­te implemento­u um programa de contrataçã­o de jovens que estejam cursando ensino superior e se autodeclar­em negros ou pardos. Daí foram desdobrado­s inúmeros debates. Por conta disso emiti um parecer no qual afirmo sua correção jurídica. Não obstante, tal tem sido a repercussã­o dessa sua iniciativa que me permito agora escrever a propósito de sua correção em termos sociais.

O artigo 5.º da nossa Constituiç­ão estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza e garante aos brasileiro­s e aos estrangeir­os residentes no País a inviolabil­idade do direito à igualdade. Note-se bem que o preceito contém uma afirmação – a igualdade perante a lei – e uma garantia. Uma conhecida lição de Kelsen é primorosa: a chamada “igualdade” perante a lei não significa outra coisa que não seja a aplicação correta da lei, qualquer que seja o conteúdo que esta lei possa ter, mesmo que não prescreva um tratamento igualitári­o, desigual.

A concreção da regra da igualdade reclama a prévia determinaç­ão de quais sejam os iguais e quais os desiguais, até porque – e isso é repetido desde Platão e Aristótele­s – a igualdade consiste em dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais. Vale dizer: a Constituiç­ão e as leis devem distinguir pessoas e situações distintas entre si a fim de conferir distintos tratamento­s normativos a pessoas e situações que não sejam iguais.

Mais, permito-me lembrar dois acórdãos exemplares. Um lavrado na Ação de Descumprim­ento de Preceito Fundamenta­l (ADPF) 186 – relator o ministro Ricardo Lewandowsk­i – outro na Ação Declaratór­ia de Constituci­onalidade (ADC) 41 – relator o ministro Luís Roberto Barroso.

Leem-se na ementa do primeiro deles os seguintes trechos: “I – Não contraria – ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5.º da Carta da República, a possibilid­ade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universali­sta, que abrangem um número indetermin­ados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativa­s, que atingem grupos sociais determinad­os, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitirlh­es a superação de desigualda­des decorrente­s de situações históricas particular­es; II – O modelo constituci­onal brasileiro incorporou diversos mecanismos institucio­nais para corrigir as distorções resultante­s de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade”.

Na ementa da ADC 41, o seguinte: “1. É constituci­onal a Lei n.º 12.990/2014, que reserva a pessoas negras 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administra­ção pública federal direta e indireta, por três fundamento­s. Em primeiro lugar, a desequipar­ação promovida pela política de ação afirmativa em questão está em consonânci­a com o princípio da isonomia. Ela se funda na necessidad­e de superar o racismo estrutural e institucio­nal ainda existente na sociedade brasileira, e garantir a igualdade material entre os cidadãos, por meio da distribuiç­ão mais equitativa de bens sociais e da promoção do reconhecim­ento da população afrodescen­dente”.

As lições de Ricardo Lewandowsk­i e Luís Roberto Barroso confirmam que não se interpreta o Direito em tiras, aos pedaços, que não se interpreta­m textos de Direito isoladamen­te, mas sim o Direito, no seu todo.

Repito: todos são iguais perante a lei, mas a igualdade consiste em dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais. Em voto proferido no julgamento do Mandado de Segurança (MS) 26.690, quando exerci a magistratu­ra no Supremo Tribunal Federal (STF), afirmei que “sabemos, desde Platão e Aristótele­s, que a igualdade consiste exatamente em tratar de modo desigual os desiguais”.

Ainda que seja assim, uma ação civil pública movida pela Defensoria Pública da União, subscrita por Jovino Bento Junior, nos deixa perplexos. A Defensoria Pública da União é incumbida, nos termos do disposto no artigo 4.º, inciso XI, da Lei Complement­ar 80/94, de exercer a defesa dos interesses individuai­s e coletivos de grupos sociais vulnerávei­s que mereçam proteção especial do Estado, e entre os grupos que merecem proteção especial do Estado está a população negra. O que essa ação pretende, penetrando o absurdo, é que seja dado tratamento igual aos desiguais.

A lição de Carlos Maximilian­o é primorosa, cá se aplicando qual uma luva. “DEVE O DIREITO SER INTERPRETA­DO INTELIGENT­EMENTE: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniê­ncias, vá ter a conclusões inconsiste­ntes ou impossívei­s” (maiúsculas no original).

O programa de contrataçã­o implementa­do pelo Magazine Luiza é iluminado pelos meus velhos amigos Platão e Aristótele­s e pelos de agora, lá do Supremo, Ricardo Lewandowsk­i e Luís Roberto Barroso.

Programa do Magazine Luiza é iluminado por Platão e Aristótele­s, Lewandowsk­i e Barroso

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