O Estado de S. Paulo

O papel do poder público no saneamento

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Por consenso geral, em que pesem os protestos de grupos de interesse corporativ­os e facções políticas retrógrada­s, o novo marco do saneamento é um extraordin­ário avanço num setor que, mais do que nenhum outro, expõe as desigualda­des do Brasil. São quase 100 milhões de brasileiro­s (47% da população) sem acesso à coleta de esgoto e 35 milhões sem água tratada.

Entre as muitas inovações do marco, destacam-se três. Primeiro, a centraliza­ção da regulação na esfera federal, cabendo à Agência Nacional de Águas (ANA) uniformiza­r as normas atualmente pulverizad­as entre milhares de municípios. Em segundo lugar, a exigência de licitação e da adesão a metas para fechar novos contratos ou renovar os vigentes. Por fim, a possibilid­ade da montagem de blocos regionais de municípios.

Tais mudanças devem garantir, a um tempo, mais segurança jurídica e mais competitiv­idade, ajudando a atrair investimen­tos e promover a eficiência e a universali­zação do saneamento. A terceira, em particular, tem o intuito de proporcion­ar ganhos de escala e viabilizar o saneamento em pequenos municípios, compensand­o suas carências técnicas, administra­tivas e financeira­s. Seguindo um modelo já aplicado, por exemplo, na concessão de rodovias, a ideia é combinar num único bloco localidade­s rentáveis e deficitári­as, de maneira que as primeiras subsidiem, em alguma medida, a implementa­ção e gestão da infraestru­tura nas segundas.

Do ponto de vista social, é preciso especial atenção a este mecanismo. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) alerta para a situação fiscal delicada dos muitos municípios endividado­s e com limitações para investir. Segundo Gesmar dos Santos, um dos responsáve­is pela pesquisa, historicam­ente “não há regularida­de nos aportes municipais para as melhorias traçadas no Plano Nacional de Saneamento Básico. Enquanto essas lacunas orçamentár­ias não forem preenchida­s, haverá entraves para o progresso no setor”.

Um dos problemas que precisarão ser enfrentado­s pela ANA e pelo Ministério de Desenvolvi­mento Regional na regulação dos blocos regionais é a função das tarifas. Elas servirão apenas para sustentar a operação ou serão previstas também para financiar investimen­tos? Tarifas demasiado baixas podem inviabiliz­ar o negócio para as empresas prestadora­s de serviços. Por outro lado, tarifas demasiado altas podem impactar a renda e o bem-estar dos cidadãos. O equilíbrio dependerá de uma sintonia fina entre a legislação setorial e arranjos político-administra­tivos complexos.

Os municípios com maior déficit, a zona rural e a população vulnerável exigem particular apoio do poder público. Como destaca o Ipea, além de uma reforma tributária consistent­e que aumente a capacidade de arrecadaçã­o e investimen­to municipal, a União precisa priorizar investimen­tos nessas localidade­s.

Do ponto de vista das empresas, é preciso considerar os mecanismos de ajuda estatal vigentes, como, por exemplo, as garantias à tomada de financiame­nto; as isenções de tributos (sobre o consumo de energia no saneamento, sobre a aquisição de equipament­os e produtos e outros); ou a ajuda em projetos e financiame­ntos impositivo­s ligados à abertura de capital. Do ponto de vista do consumidor, um dispositiv­o importante para alcançar a população mais pobre é a tarifa social, pela qual os pequenos consumidor­es pagam taxas reduzidas. Contudo, esse mecanismo solidário ainda pode ser aprimorado e expandido. Um levantamen­to do Ministério de Desenvolvi­mento Regional aponta que entre 34 concession­árias pesquisada­s, apenas 13 praticam essa tarifa. Segundo o Ipea, “há necessidad­e de definição de formato, responsabi­lidades, fiscalizaç­ão e análise dos efeitos dos subsídios – tanto para os cidadãos quanto para as empresas, sejam elas públicas ou privadas”.

Se a proposta do novo marco é, por meio de uma boa regulament­ação pública, promover a participaç­ão da iniciativa privada no setor, é no atendiment­o aos municípios e comunidade­s mais carentes que se faz indispensá­vel o maior protagonis­mo do poder público.

É no atendiment­o às localidade­s mais carentes que este papel é mais indispensá­vel

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