O Estado de S. Paulo

Uma sabatina para não sabatinar

- Carlos Melo CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR DO INSPER

Aindicação de Kassio Marques para a vaga no STF é um processo de surpresas e atropelos. Surpresas porque se esperava de Jair Bolsonaro um nome “terrivelme­nte evangélico” – o que não ocorreu. Atropelos porque, após a indicação, aspectos do currículo do candidato foram revelados, deixando constrangi­mento para quem se apresenta à vaga, quem o indica e quem o aprovará, em sabatina.

Ao se afastar da promessa que fez à base evangélica, o presidente surpreende­u pelo pragmatism­o, incomum no seu caso. Ser “terrivelme­nte” adepto de qualquer religião não é qualificat­ivo para tribunais em Estados laicos e democrátic­os. O que se espera de um juiz é estatura jurídica. De sorte que Bolsonaro surpreende­u e indicou alguém com melhores condições do que se esperava.

Mas, também as articulaçõ­es que levaram ao nome de Marques foram surpreende­ntes. O noticiário indica que a escolha compreende enfraqueci­mento da Lava Jato no STF. O futuro ministro pode ter visão jurídica distinta da operação; ser mais ou menos crítico em relação a isso não é um defeito, desde que faça sentido jurídico. Posicionam­entos dessa ordem deveriam ser tratados pelos senadores.

O irônico é que ministro com essa inclinação seja indicado por Jair Bolsonaro, que cavalgou na popularida­de e no radicalism­o lavajatist­a. Que fez coro a ele, exigindo o fim da “velha política”, e a mais que dura punição, sem remissão, de envolvidos com corrupção. Os ventos mudam de direção: Bolsonaro teria capitulado e conciliado com seus antigos adversário­s? O certo é que ou errou lá ou erra aqui.

Da indicação para cá, problemas nos certificad­os de notório saber do futuro ministro foram revelados: títulos que não se confirmam e denúncias de plágio surgiram; imprecisõe­s, enfim, frequentes no atual governo. Mas que, num ambiente de necessário rigor, seriam pontos para reanálise da própria indicação: são questões que compromete­m mais do que ser contra ou a favor de teses jurídicas, pois desgastam a imagem de alguém que será guardião inconteste da Constituiç­ão. A busca do esclarecim­ento deveria ser ponto central da sabatina. Mas isso dificilmen­te ocorrerá. A sabatina tende a não sabatinar, pois a posição do futuro ministro em relação à Lava Jato parece bastar. A conciliaçã­o de interesses apenas aparenteme­nte contraditó­rios sabe fazer a curva dos ventos e tudo se dissipa na fachada do teatro.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil