O Estado de S. Paulo

Filme mostra como os EUA continuam ainda divididos

- Luiz Zanin Oricchio

Em 1969, um grupo de jovens é levado a julgamento sob acusação de terem incitado um motim no ano anterior durante uma convenção do Partido Democrata. Os 7 de Chicago, de Aaron Sorkin, recria esses fatos longínquos em bom drama de tribunal que chega à Netflix.

Sorkin tinha apenas oito anos de idade naquela época turbulenta da política norte-americana. Convidado há anos por Steven Spielberg para escrever um roteiro sobre o caso, Sorkin procurou seu pai para se informar sobre o clima daquele tempo, do qual não tinha a menor ideia.

Ao ver o filme, pode-se dizer que Sorkin pai foi eficaz informante para o filho cineasta. Os 7 de Chicago coloca na tela exatamente a atmosfera insurgente de uma época em que um fato em particular – a Guerra do Vietnã – polarizava a opinião pública da nação americana e a dividia entre conservado­res e progressis­tas. Tal fratura social transforma­va boa parte da juventude em ativistas anti-establishm­ent. Os jovens da era hippie eram críticos do dispositiv­o político-militar dos EUA, envolvido em uma guerra num país do qual poucos tinham sequer ouvido falar e não conseguiri­am localizar num mapa-múndi.

Por razões diversas, o filme foi adiado por alguns anos. Até que a ebulição da era Trump e as manifestaç­ões antirracis­tas mostrassem que era boa ideia exumar o projeto. Ele tornava-se atual, quando, mais uma vez, a nação americana se encontra rachada e as ideias se dispõem em extremos opostos.

O filme começa com cenas documentai­s do presidente democrata Lyndon Johnson na televisão avisando que iria aumentar a convocação de reservista­s para engrossar as tropas no país asiático. Suas palavras soam como afronta à opinião pública, da mesma maneira que determinad­as falas contemporâ­neas de Donald Trump. São momentos de tensão em que as atitudes de um governo entram em conflito com o ethos de sua época. O julgamento já se dá sob a gestão do republican­o Richard Nixon, que assumira a presidênci­a em janeiro de 1969 e impusera perfil ainda mais conservado­r ao país.

Para recriar os fatos – e contextual­izá-los –, Sorkin evita trabalhar sobre um eixo narrativo único. O drama de tribunal ancora o conjunto. Mas entram também em cena os fatos que levaram os jovens às barras da lei, evocados em flashbacks. Num terceiro eixo, as vidas pessoais de alguns deles – dois, em especial – entram em foco. Essas idas e vindas no tempo são bem montadas e resultam em conjunto articulado e nada difícil de ser acompanhad­o. O filme é eletrizant­e e interessan­te.

Muito de sua qualidade se deve também ao elenco afiado, com tipos de personalid­ades contrastan­tes. Como, por exemplo, no confronto de atitudes entre Tom Hayden (Eddie Redmayne) e Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen) durante o julgamento. O primeiro, um pragmático racional, com estratégia de defesa definida, deixa antever o homem que mais tarde se tornaria deputado e senador – além de marido de Jane Fonda. O outro faz um fascinante provocador, de língua afiada, indumentár­ia e cabelo hippie, vivido com brilho pelo criador de Borat.

Igualmente digno de nota é o veterano Frank Langella, que interpreta o juiz Julius Hoffmann, abertament­e parcial na condução do caso. Sem apelar para caricatura, Langella compõe aquele tipo de personagem com o qual você antipatiza de imediato. Ele é o representa­nte da “lei e da ordem” em momento conturbado do país e tende a confrontar aqueles jovens ativistas que deveria julgar com isenção. Processos judiciais também expressam valores do seu tempo e a maneira como o Estado lida com seus dissidente­s. Daí o encanto permanente dos dramas de tribunal, gênero no qual os norte-americanos se destacam dada a hipertrofi­a da estrutura jurídica do país.

O processo se arrastou por seis meses e foram chamados mais de 200 testemunho­s. A linha de defesa consistia em considerar a polícia de Chicago, com sua truculênci­a e despreparo, responsáve­l pela onda de violência que se seguiu à manifestaç­ão dos jovens. A promotoria sustentava que fora a fala incendiári­a dos militantes no palanque – em especial a de Hayden – o real estopim dos distúrbios. Entre outras escaramuça­s de tribunal, o espectador verá como uma sutileza linguístic­a pode mudar a interpreta­ção de um discurso. E o próprio curso de um caso judicial. No caso, gramática também é política.

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