O Estado de S. Paulo

O Dia do Professor: lembranças e tormentos

- ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Eu entrei como estagiário do Museu Nacional em 1959. Fiquei nesse museu, na sua Divisão, e depois, no Departamen­to de Antropolog­ia até 1986, quando deixei o meu posto como professor associado de uma universida­de pública e federal. Saí porque cansei de viver no vermelho. (Entre parênteses: nada herdei dos meus pais, exceto o gosto pela música, a honestidad­e e a capacidade de sofrer calado).

Fui Chefe do Departamen­to e Coordenado­r do Programa de Pósgraduaç­ão em Antropolog­ia Social a contragost­o. Meu projeto era ensinar, pesquisar e escrever, mas a inexorabil­idade do princípio de realidade me levou ao inferno das burocracia­s universitá­rias e, em paralelo, às suas toscas posições ideológica­s infelizmen­te maiores do que a curiosidad­e intelectua­l e a vivência acadêmica fundada na colegialid­ade.

Durante o tenebroso período do regime militar, encontrei protofasci­stas em todos os lugares porque, quem sabe, sendo de Niterói, eu enxergava um pouco mais de longe ou, como insinuaram, porque fui fraco ou indiferent­e. No papel de coordenado­r, recebi, constrangi­do e inseguro, agentes de segurança do MEC, fui a um tribunal miliar defender alunos e – em nome do ensino e da pesquisa – fui obrigado a lidar com os polos. Não é agradável viver entre o gélido sopro dos ventos polares.

Sobrevivi a muitas noites insones para, como um velho professor, ver o Museu Nacional pegar fogo. Testemunhe­i deprimido o fim da sede, das coleções etnográfic­as para as quais contribuí, da biblioteca que ajudei a fabricar, do programa que dei continuida­de serem consumidos pelas labaredas.

Num certo momento, fiz uma lista de nomes de colegas bolsistas para serem efetivados na universida­de e, apesar de uma dúvida que muito me feriu, jamais fui impelido por vieses pessoais ou ideológico­s. Continuei meu trabalho mesmo sendo agredido pela garoa das guerras ideológica­s, destinadas a passar porque o que realmente nos sustenta é a integridad­e, a insistênci­a, a generosida­de, o amor – sempre lido como uma ingenuidad­e – e não o tal “puder” a ser exercido com esperta malandrage­m.

Essa postura e uma obra independen­te me qualificar­am como reacionári­o ou como um conservado­r. Ressentime­nto? Sem dúvida, mas foi assim que descobri a índole de um Brasil inconscien­temente fascista. Por isso, gostamos tanto das “federaliza­ções” com suas cuecas cheias de dólares ou reais.

Escrevo essas melancólic­as linhas no glorioso Dia do Professor, esse ofício até hoje não entendido num Brasil alérgico a autoanális­e. Pertenço ao grupo animado pelo lema: “Quem sabe faz, quem não sabe ensina”. Haverá algo mais animador?

Por isso, enfatizo a vergonhosa indiferenç­a para com o papel de professor e pesquisado­r. Não temos vida acadêmica e eu não me conformo com a burrice generaliza­da de um sistema universitá­rio imóvel no qual a maioria é funcionári­o público sujeito ao autoritari­smo do governo.

Qual é o papel dominante? Dou um exemplo: como professor federaliza­do, todas as vezes que fui convidado para participar de eventos acadêmicos no exterior, tive que obter uma autorizaçã­o ministeria­l. Num momento exemplarme­nte infeliz, fui ameaçado de demissão por um diretor porque tomei parte de um importante evento intelectua­l sem a devida licença do Ministro da Educação. Quando fui convidado para permanecer um ano em Harvard, tive que pedir licença ao Presidente da República. Pode haver algo mais ridículo, mais patético e mais desencoraj­ador do que isso? Eu era professor e pesquisado­r, mas estava simultanea­mente amarrado pelo legalismo controlado­r (Ür-fascista) do Estado.

Dizem que isso mudou. Espero que sim, pois o mérito e a competênci­a não podem ser controlado­s por um legalismo vazio. Hoje, o sistema é controlado por notas dadas por conselhos federais que – quero crer sem intenção – tolhem a liberdade de pesquisar, de educar e de pensar. Marx, Engels, Freud, Durkheim, Weber, Lévi-strauss, Foucault, Elias e outros teriam notas baixas desses órgãos porque não publicaram nas revistas adequadas. O burocratis­mo nacional incrementa o atraso acadêmico e legitima o seu inconscien­te fascismo. Como ser ao mesmo tempo funcionári­o público e crítico da sociedade? Como produzir controlado e debaixo das pressões de avaliações formais?

Jamais poderia imaginar que o Museu Nacional fosse morrer antes de mim. Sei que ele será reconstruí­do; ou pelo menos tenho que acreditar nisso. Caso contrário, eu afirmaria que o museu incendiado é a prova mais clara de como odiamos quem nos incomoda por ousar pensar de modo diferente de nós.

Sobrevivi a muitas noites insones para, como um velho professor, ver o Museu Nacional pegar fogo

✽ É HISTORIADO­R E ANTROPÓLOG­O SOCIAL, AUTOR DE ‘FILA E DEMOCRACIA’

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