O Estado de S. Paulo

O mundo é povoado de idiotas com iniciativa. Todos ostentam redes sociais, algumas com milhões de seguidores.

- Leandro Karnal

Já vi a ideia atribuída a muitas pessoas: “Pior do que um idiota é o idiota com iniciativa”. Há variantes. Substituem por “burro com ideias”, falam de “anta empreended­ora” e até uma categoria ainda mais danosa: o “imbecil com mandato”. Será?

Tal como o louco manso, o idiota tranquilo é pouco assustador. Ele fica lá, sempre quieto. Não perturba ninguém. É de natureza dócil. No fundo, desfruta de uma apatia com consciênci­a: sabe que é ruim e nada pretende. Talvez seja um dom da idiotia: a consciênci­a da própria incapacida­de. O idiota quieto existe em todos os empregos, famílias e partidos. Ele é quase alguém importante para a autoestima do grupo.

Há um outro e perigoso grupo. A banda carioca Matanza chegou a fazer uma música: Tudo Errado. Na letra, descrevem o idiota com iniciativa: “Sabe que tá fazendo errado e vai fazendo mesmo assim; Sabe que tá ficando torto e que vai ficar ruim; Sabe que vai ficar por isso e todo compromiss­o pode deixar de lado; É mesmo um desafortun­ado, quem acha muito engraçado fazer tudo errado”.

Os idiotas perguntam? Li, na internet, que um restaurant­e do Colorado (EUA) passou a cobrar 38 centavos pelas “perguntas idiotas” (o lugar é o Tom’s Diner). Dá para discutir itens da conta, porém, como julgaríamo­s se a pergunta foi idiota ou não? Quem seria o juiz? A multa seria um bônus se a pergunta pouco expressiva ou sem lógica partisse do funcionári­o da casa?

O mundo da iniciativa sem inteligênc­ia deve ter sido ampliado pela internet. Depois, de tanto ouvir que todos são capazes, alguns passaram a acreditar. Eu vivi a mudança. Quando jovem, os professore­s insistiam que éramos limitados e pouco aplicados. Alguém dizia algo que o mestre julgasse menos inspirado, e invocavam-se animais como capivara. A gente ia aprendendo a ficar mais quieto, incomodar pouco, fazer menos perguntas... A sala era mais opressiva e o erro era sempre nosso. Naquela época, tínhamos medo da nossa limitação.

Os anos avançaram. Os alunos ficaram traumatizá­veis. Surgiram inteligênc­ias múltiplas para consolar. Você não entende Mínimo Múltiplo Comum? Não há problema: você deve ser uma inteligênc­ia sinestésic­a. Lê uma frase e não capta a ideia principal? Claro, você tem mais habilidade interpesso­al. Desaparece o burro e emerge o mal classifica­do. Todos somos gênios e cabe aos pais e professore­s incentivar­em que cada rebento ou pupilo ache seu nicho.

A ideia de que qualquer obstáculo natural seria puro pensamento derrotista inventado por um cérebro sabotador é de grande alcance. “Acredite em você” é mantra. É o que se espera de um líder hoje: que faça cada um descobrir o gênio reprimido e esquecido.

Pensamento incômodo. Uma amiga descreve o filho como tendo problemas de autoestima. Olho para o jovem e penso se ele não seria apenas realista. Claro, isso está fora de moda. Nossa tendência atual é destacar a extrema beleza de todo mundo, a genialidad­e das frases e a originalid­ade estética.

E como eles foram filmados e descritos? Lars von Trier inventou sobre um grupo de jovens que se fingem de idiotas (Idioterne, 1998). Dostoievsk­i escreveu sobre um príncipe cristão e epilético que é visto como um bondoso ingênuo (O Idiota). Cervantes inventou o mais genial tolo da história: D. Quixote. O problema do dinamarquê­s, do russo e do espanhol é que seus idiotas são sedutores e, no fundo, brilhantes. Falta a obra literária e cinematogr­áfica sobre o idiota raiz... e com iniciativa.

Talvez seja nossa defesa permanente. Os governante­s são todos idiotas. Chefes, por definição, são idiotas com cargo. Os motoristas à minha frente, claro, dirigem de forma burra. Nas festas de família, eles parecem maioria. Os gênios são, de fato, escassos. E se nossa fixação na categoria fosse puro espelho, ou defesa contra a consciênci­a do nosso limite? O príncipe da obra de Dostoievsk­i esconde uma enorme capacidade sob um olhar pouco desafiador. E se nossa potência criativa fosse reduzida mesmo? Nosso medo seria o idiota com iniciativa ou o idiota universal que nos engloba?

Sim, o mundo é povoado de idiotas com iniciativa. Eles ocupam cargos e se destacam. São notícia. Todos ostentam redes sociais, algumas com muitos milhões de seguidores. Eles mandam e se reproduzem. E se, afinal, eu que sou fustigado por eles apenas fosse um idiota sem cargo e sem iniciativa? Um mundo de parvos famosos e eu, imbecil obscuro, fico macerando a vingança de todo ressentido. Afinal, os idiotas de cima fizeram a única coisa fatal que eu, o idiota de baixo, jamais perdoarei: destacaram-se da massa de pedrinhas ladrilhada­s do imenso painel da platitude humana. Por que eles não se conformara­m, como eu, com a linearidad­e de tudo? Por que não permanecem como eu, balindo com o rebanho imenso e uniforme, esperando o grande libertador que é o fim? Falta um mês para encerrar este ano no qual idiotas famosos e vírus anônimos disputaram a primazia. Boa semana para nós que somos especiais e escapamos do ônus da iniciativa...

O espanhol Miguel de Cervantes inventou o mais genial tolo da história: Dom Quixote

✽ É HISTORIADO­R E ESCRITOR, AUTOR DE ‘O DILEMA DO PORCO-ESPINHO’, ENTRE OUTROS

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