O Estado de S. Paulo

Uruguai atrai argentinos que fogem da crise

Batalha ideológica no Rio da Prata opõe presidente conservado­r do Uruguai, Lacalle Pou, e peronista argentino Alberto Fernández

- Daniel Galvalizi

A crise argentina vem causando atrito entre os governos conservado­r de Luis Alberto Lacalle Pou, do Uruguai, e o peronista de Alberto Fernández, da Argentina. A pandemia afetou as exportaçõe­s argentinas e interrompe­u o turismo, minguando os dólares. Aos problemas de caixa, Fernández reagiu com aperto fiscal e um projeto de taxar grandes fortunas, aprovado pelos deputados na semana passada. Do outro lado do Rio da Prata, Lacalle Pou acena com incentivos para atrair argentinos ricos.

Ciente da crise no país vizinho, o presidente do Uruguai propôs, em junho, um projeto para facilitar o assentamen­to de estrangeir­os ricos, de olho nos milionário­s argentinos que desejam mudar a sede das empresas para um ecossistem­a econômico mais confiável, com menos impostos e perto de casa.

Aprovado pelo Congresso em agosto, o decreto de Lacalle Pou baixou o teto para os estrangeir­os que quiserem se qualificar como residentes. Agora, eles precisam comprar um imóvel de no mínimo US$ 380 mil – antes era de US$ 1,7 milhão. Para empresário­s, o investimen­to inicial foi cortado de US$ 5,5 milhões para US$ 1,6 milhão. A isenção de parte dos impostos duplicou, de cinco para dez anos. Além disso, a obrigação de passar um tempo no país baixou de seis para dois meses.

De acordo com a revista britânica The Economist, 20 mil argentinos já teriam dado entrada em pedidos de residência no outro lado do Rio da Prata. Fernández reagiu ao êxodo, determinan­do que os argentinos que se mudarem terão de viver no Uruguai por pelo menos seis meses do ano, podendo ficar apenas 90 dias na Argentina.

A desvaloriz­ação do peso argentino, que começou em 2016, mas disparou em 2018 e 2019, fez com que a moeda local se tornasse uma das mais fracas da América Latina. Em janeiro de 2016, um dólar equivalia a 15 pesos. Hoje, vale 87 pesos, embora seu verdadeiro preço (no mercado ilegal e paralelo) seja 156. A economia da Argentina, a terceira maior da região – depois de Brasil e México –, encolheu muito, quando calculada em dólar: está 40% menor se comparada a 2008.

A falta de confiança na economia, o ambiente ruim para os negócios e uma agressiva política fiscal, que inclui restrições cambiais e à remessa de lucros para o exterior, vêm provocando uma fuga não só de multinacio­nais, mas de cidadãos. A reação de Fernández tem sido a negação da crise, pelo menos publicamen­te.

No dia 3, o ministro da Produção, Matías Kulfas, chamou de “mito” o êxodo em massa. Em relatório, o ministério afirmou que, “nas últimas semanas, se instalou na agenda a ideia de que a Argentina estaria sofrendo um suposto êxodo de empresas, em decorrênci­a de políticas anti-investimen­to vigentes no país”. “Tivemos alguns casos pontuais. Mas este não é um problema só argentino”, disse Kulfas.

O governo descreve o cenário como “falso”, pois muitas empresas prometeram investimen­tos ainda neste ano. Para o ministro do Trabalho, Claudio Moroni, “não existe uma situação particular na Argentina que provoque a saída de empresas, mas sim decisões empresaria­is tomadas por motivos diferentes”.

Os problemas econômicos da Argentina são cada vez mais influencia­dos pelo confronto crescente entre as duas principais alas da coalizão governamen­tal: o kirchneris­mo, de Cristina, e o peronismo mais tradiciona­l, de Fernández. O primeiro tem força em Buenos Aires e no Congresso – metade dos deputados e senadores responde cegamente à liderança da vicepresid­ente.

Fernández conta com o apoio dos governador­es mais centristas (exceto o da Província de Buenos Aires) e dos sindicatos peronistas. A divisão é palpável não apenas na política econômica, mas também em várias batalhas legislativ­as, como a eleição do próximo procurador-geral do Estado e o projeto para mudar as primárias.

As diferenças estão se tornando cada vez mais evidentes: Cristina e o presidente não se viam pessoalmen­te havia 72 dias, até

• Incentivo

“O Uruguai é uma nação de portas abertas, com uma política migratória que oferece segurança pública, jurídica e econômica”

Luis Alberto Lacalle Pou PRESIDENTE DO URUGUAI

que a morte de Diego Maradona reuniu os dois no tumultuado velório do craque na Casa Rosada.

A crise econômica e a instabilid­ade política não se restringem ao mundo empresaria­l ou aos veículos de comunicaçã­o. O impulso para deixar o país é um fenômeno social que está se tornando cada vez mais visível em conversas informais entre amigos, colegas de trabalho e parentes.

Hoje, é difícil encontrar um argentino que, em algum momento da conversa, não comente sobre um conhecido que pensa em sair da Argentina ou que pretende acionar os procedimen­tos para adquirir a cidadania de algum país da União Europeia – um porcentual muito elevado da população tem pelo menos um avô ou bisavô europeu.

De acordo com um relatório da consultori­a de recursos humanos Randstad Argentina, os pedidos para encontrar trabalho no exterior dispararam. Segundo os dados, a primeira opção é a Espanha (26%), seguida de EUA (21%), Itália, Chile e Uruguai (7%) e Canadá (2%).

A Randstad afirma que os profission­ais argentinos mais requisitad­os são cientistas da computação, engenheiro­s, economista­s e publicitár­ios. O relatório indica ainda que 84% dos trabalhado­res argentinos consideram a possibilid­ade de seguir carreira no exterior.

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ANDRES CUENCA OLAONDO/REUTERS-1/3/2020 Disputa. Presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, durante evento em Montevidéu: decreto para facilitar a mudança de argentinos ricos para o seu país não foi bem visto pelo vizinho

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