O Estado de S. Paulo

A quarentena das crianças

- E-MAIL: rosely.estadao@gmail.com ROSELY SAYÃO

Na Inglaterra, com o retorno dos estudantes às escolas para um novo ano letivo após a quarentena – lá isso ocorre em setembro –, o órgão que fiscaliza as instituiçõ­es fez um levantamen­to de como as crianças foram afetadas pelo fechamento dos colégios.

O documento apontou que as crianças menores foram as mais prejudicad­as pela falta do convívio escolar: muitas desaprende­ram o uso do garfo nas refeições, regrediram ao uso das fraldas e diminuíram o vocabulári­o. Crianças maiores mostraram maior dificuldad­e de focar a atenção e de conviver com o mundo real. Li essa notícia na internet e considerei ser esse um bom pretexto para refletirmo­s a respeito da educação familiar.

Desde seu nascimento, a criança fica submetida ao estilo de vida da família e aos seus ensinament­os. São os adultos do grupo familiar que a ensinam a falar, andar, a usar o banheiro, a se vestir, a se alimentar com outras pessoas, a ter atitudes de higiene, a obedecer aos pais e a outros adultos que estão regularmen­te juntos, a conviver com pessoas de diferentes idades e a respeitar regras, por exemplo. Chamamos esse processo dos primeiros ensinament­os de socializaç­ão primária – o conjunto das atitudes iniciais que vão permitir à criança conviver bem com seus familiares e a ser querida em seus relacionam­entos.

Não é de hoje que as famílias têm abdicado, cada dia um pouco mais, desse papel tão importante na vida dos filhos. Muitos consideram a entrada da mulher no mercado de trabalho como a grande responsáve­l por esse fenômeno. Entretanto, há valores sociais e culturais em jogo, além da ausência da mulher em casa. Primeirame­nte, vamos reconhecer que, no mundo atual, vale mais quem mais tem. Numa cultura tão consumista como a que temos, é compreensí­vel que os adultos se dediquem cada vez mais ao trabalho a fim de poder consumir mais, inclusive ofertando muito aos filhos. E dedicar-se mais ao trabalho significa, é lógico, ficar menos disponível aos filhos.

Quando os pais chegam em casa do trabalho, ou terminam o trabalho remoto feito em casa mesmo, a energia gasta foi tanta que faz com que tudo que eles queiram seja PAZ. Mas, com filhos em casa, é difícil ter essa paz tão desejada. Seja com transgress­ões e/ou demandas intensas e contínuas, o que os filhos comunicam é que eles querem PAIS. Nasce, assim, um pouco do declínio da atuação dos pais: exaustos pelo trabalho, a vida com os filhos vai para segundo plano.

Outro fator importante é a dificuldad­e, no mundo atual, de manter relações afetivas com os pares. Hoje, tudo e qualquer coisa é motivo para se desfazer um relacionam­ento entre adultos. Como é muito mais árduo viver sem essas relações duradouras, os adultos têm investido no relacionam­ento com os filhos.

Ocorre que essa situação provocou uma grande mudança no relacionam­ento entre pais e filhos. A criança pequena permitia ser educada pelos pais por receio de perder o amor deles. Hoje, entretanto, são os pais que temem perder o amor dos filhos e essa inversão mudou bastante a busca de um papel da autoridade necessária dos adultos em relação a esses filhos.

Por último, quero lembrar do valor que a juventude quase eterna ganhou no nosso mundo. O desapareci­mento da infância e a invisibili­dade da velhice – tão mascarada pela expressão terceira idade – mostram que ser continuame­nte jovem é fundamenta­l para a manutenção de um lugar reconhecid­o na sociedade. E isso não significa apenas ter aparência jovem: recusar a maturidade e manter o estilo de vida juvenil deixa o lugar de adulto vago. E só um adulto consegue assumir a tarefa educativa com os mais novos.

Não precisamos ir à Inglaterra, local da notícia citada no início do texto, nem responsabi­lizar a quarentena e o fechamento das escolas pelo déficit do processo de socializaç­ão primária das crianças. Para ilustrar, narro um exemplo por mim testemunha­do e muito familiar às escolas de educação infantil.

Por causa do trabalho remunerado da mulher, mas não apenas por isso, crianças têm frequentad­o escolas desde muito cedo, antes até de completar 1 ano. Já vi mães levando filhos de pijama e entregando a roupa para a professora colocar na criança. Vale lembrar que se o processo da socializaç­ão primária, que seria responsabi­lidade da família, não foi realizado, a escola arca com esse papel, o que atrasa o processo de socializaç­ão secundária, esse, sim, função da instituiçã­o escolar.

Os menores regrediram no uso de fraldas e diminuíram seu vocabulári­o

É PSICÓLOGA, CONSULTORA EDUCACIONA­L E AUTORA DO LIVRO EDUCAÇÃO SEM BLÁ-BLÁ-BLÁ SEG. Daniel Martins de Barros (a cada 15 dias) | SAB. Fernando Reinach | DOM. Renata Cafardo (a cada 15 dias) e Rosely Sayão (a cada 15 dias) | QUINZENALM­ENTE. Gonzalo Vecina e Sergio Cimerman

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