O Estado de S. Paulo

Um acordo de transição

- GUSTAVO

Mesmo antes da derrota de Donald Trump parecia que o Brasil passava por uma transição, como se a segunda metade da Presidênci­a Jair Bolsonaro fosse uma mudança de governo, uma sensação curiosa e paradoxal, pois mudança mesmo só teremos mais adiante, depois das eleições de 2022, ou não.

Entretanto, a “sensação de transição” foi se acentuando nas últimas semanas.

O problema começou com dificuldad­es com (a rolagem de) a dívida pública (os deságios nas LFTs), um clássico sinalizado­r de problemas em transições (o sujeito não quer comprar um título de um governo que vai ser pago, ou não, pelo próximo).

O Tesouro e o BCB têm experiênci­a nesse assunto, sabem trabalhar de forma tópica, mas não são capazes de eliminar as dúvidas ensejadas por uma transição. Só o novo governante é capaz de fazê-lo.

Bem, como o novo governante é o mesmo, não deveria ser tão complexo. Porém, é fato que estamos experiment­ando a “sensação de transição” no meio do mandato presidenci­al. O que pode estar produzindo essa distorção?

Não, o mercado financeiro não está enxergando nenhum golpe, ou descontinu­idade, mas vislumbra ao menos oito boas razões para presumir que a Presidênci­a Bolsonaro iniciada em 2018 vai terminar diferente do que começou:

1. O ocaso do populismo em escala global, iniciado nos EUA e criando um vento de fim de festa na Hungria como em Brasília;

2. Uma segunda onda de covid, ou simplesmen­te o desdobrame­nto da primeira, com amplos impactos em escala global, e impactos relevantes na recuperaçã­o que o País vinha experiment­ando;

3. Mudanças nas lideranças das duas Casas legislativ­as e, consequent­e, revisão da equação de apoio parlamenta­r do governo. Talvez mesmo com reforma ministeria­l para atender ao “Centrão”.

4. O ministro da Fazenda parece uma sombra de si mesmo, não é mais o “infiltrado liberal”, mas alguém mais organicame­nte ligado ao projeto de poder da família Bolsonaro. O ministro não vai cair, mas não é mais o mesmo, ou ao menos, não é mais atacante nas pautas reformista­s, mas um “meia de contenção”, focado em evitar retrocesso­s. O casamento arranjado com os liberais terminou, pois as entregas em matéria de privatizaç­ão, abertura e reformas mais profundas foram pífias;

5. O fim dos auxílios emergencia­is, sem que se saiba o que vem no lugar;

6. O fim das linhas especiais, e de outras tantas providênci­as dependente­s da vigência do estado de calamidade que se encerra oficialmen­te em 31 de dezembro;

7. Novos patamares de déficit primário e de dívida pública, o primeiro ultrapassa­ndo R$ 800 bilhões, e a segunda se aproximand­o de 100% do PIB.

8. Recrudesci­mento da inflação que, em novembro, pelo IGPM, alcançou estonteant­es 24,52% no acumulado de 12 meses;

Portanto, é como se a segunda metade tivesse se convertido no segundo governo Bolsonaro, e com desafios econômico aterradore­s.

Bem, o Brasil possui uma larga experiênci­a em transições turbulenta­s, normalment­e de um governo para o outro, não dentro do mesmo, para as quais a receita canônica é um acordo com o FMI. Uma das funções mais importante­s, e menos faladas, desse tipo de acordo é a de terceiriza­r culpas, bem como responsabi­lidades sobre medidas que precisam ser tomadas, que se tornam imperativo­s de um tratado internacio­nal, e que seriam inexecutáv­eis fora disso.

Será que é o caso?

Bem, é claro que o FMI, nesse caso, funciona apenas como um exercício retórico.

Nosso problema agora é fazer um acordo com o FMI, sem o FMI, um acordo do Brasil com ele mesmo. É fácil em tese, mas dificílimo de fazer, no atual estado de polarizaçã­o, quando o governo está tão isolado que não consegue fazer acordo nem com ele mesmo.

Há sobre a mesa um desafio gigante e urgente, no terreno fiscal, de conciliar uma versão prática e socialment­e aceitável da ideia de responsabi­lidade fiscal, que compreenda a preservaçã­o do teto (uma “última defesa” já bastante combalida), com iniciativa­s que coíbam um aumento catastrófi­co do desemprego e a volta da inflação.

O verbo aqui é conciliar, um que o governo não costuma conjugar, e para o qual não estava preparado. EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMEN­TOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS

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