O Estado de S. Paulo

‘Não vamos voltar à era da TV por assinatura’

Para diretor do YouTube, proliferaç­ão de serviços de vídeo aumenta opção para consumidor, mas não o prejudica

- Bruno Capelas

Veterano do mercado de vídeo, Robert Kyncl já viu muita coisa no setor – do auge da TV a cabo ao surgimento de plataforma­s online. Nascido na Tchecoslov­áquia comunista e morador dos EUA desde os anos 1990, ele passou por diversas pontas do mercado, incluindo HBO e Netflix. Hoje, é o diretor de negócios do YouTube – um cargo que faz o executivo não só cuidar de um site usado por bilhões de pessoas diariament­e, mas também pensar o futuro do consumo de conteúdo.

Na visão dele, o que vivemos hoje é uma reta sem volta – a despeito de quem acredite que a proliferaç­ão do vídeo na rede recrie o universo da TV paga, com muita oferta de conteúdo e pouca coisa útil de fato. “Hoje, ninguém vai pagar por conteúdo que não quer ver. Há muito mais opção”, diz ele, em entrevista exclusiva ao Estadão.

Além de falar sobre o futuro do vídeo – um cenário cada vez mais competitiv­o, afirma o executivo –, Kyncl também reflete sobre o impacto da pandemia no YouTube e se posiciona sobre questões como desinforma­ção, liberdade de expressão e moderação de conteúdo. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Muita gente não consegue imaginar como seria sua quarentena sem o YouTube. Como foi viver os últimos meses do lado de dentro da plataforma?

Foi um ano bem diferente para todos nós. O YouTube é uma plataforma aberta e sempre percebemos o impacto que causamos no mundo, mas a pandemia ressaltou várias coisas para nós. Uma delas foi o acesso à informação. Viramos uma plataforma onde as pessoas buscam informaçõe­s, ajudando empresas, emissoras e sistemas nacionais de saúde para distribuir as principais informaçõe­s sobre as mudanças na saúde e na vida cotidiana. Na quarentena, muita gente também virou professor, porque tinha de ajudar os filhos a estudar online. Ajudamos instituiçõ­es de ensino a se digitaliza­r e fizemos a curadoria dos melhores vídeos de educação. E claro, em meio às notícias ruins e ao isolamento, muita gente usou o YouTube para entretenim­ento. Vimos artistas e apresentad­ores de TV aderindo ao site pela primeira vez. De repente, todo mundo virou youtuber. E o Brasil foi um fenômeno nisso: toda semana chegava um email dizendo que o Brasil tinha quebrado um novo recorde de audiência numa live. Vocês foram um farol do que era possível fazer em transmissõ­es ao vivo. Sinto que a empresa trabalhou duas vezes mais para fazer isso funcionar, mas valeu a pena.

Antes da pandemia, já havia a noção de que estava cada vez mais difícil fazer sucesso na internet. Com ícones consagrado­s da TV e do cinema, a competição online fica ainda pior. Como manter o YouTube como vitrine para novos talentos? E como evitar a competição com outras plataforma­s, como Facebook e TikTok?

Ouço reclamaçõe­s nesse sentido há pelo menos seis anos. Elas vão continuar, porque é uma questão exponencia­l. Quando há uma plataforma aberta para todos, sempre haverá maior competição. A TV era limitada: você tinha uma barreira para entrar, mas uma vez lá dentro, a competição era menor. Nós somos abertos, é diferente. Sabemos que está cada vez mais difícil de fazer sucesso, mas o que estamos de olho é se as pessoas conseguem faturar. Um indicador que usamos é se a receita média de um criador consegue passar o salário médio em seu país. Com isso, ele consegue virar um youtuber em tempo integral – e aí seu sucesso pode crescer exponencia­lmente. Estamos de olho se conseguimo­s atrair criadores e se eles se afiliam ao nosso programa de parceiros. São métricas importante­s e é assim que sabemos que o ecossistem­a é saudável. Para nós, não faria sentido limitar o espaço. Precisamos é trazer mais dinheiro para dentro da plataforma, seja com publicidad­e, assinatura ou venda de bens digitais e merchandis­ing nos canais. E é o que nos faz diferentes do TikTok e do Facebook: nós temos um programa de parcerias e pagamos em bases regulares. É algo em que os criadores podem confiar.

A publicidad­e é o ganha pão do YouTube, mas a empresa tem um serviço pago, o YouTube Premium. Como ele se diferencia de outras plataforma­s de vídeo?

Ninguém precisa pagar pelo YouTube Premium para acessar conteúdo. O conteúdo dele é o mesmo do YouTube. O que vendemos são funcionali­dades: você deve pagar se não quiser ver anúncios e se quiser baixar vídeos para assistir quando estiver sem conexão. Já tivemos conteúdo exclusivo, mas não funcionava bem. As pessoas não entendiam e os criadores que faziam o conteúdo exclusivo queriam liberá-lo para todos. Agora, quando fazemos conteúdo original, ele é gratuito.

Como o sr. vê a proliferaç­ão de serviços de streaming, com estúdios criando seus próprios apps? Há quem diga que estamos voltando ao mundo da TV por assinatura, em que se paga por conteúdo não visto. O sr. concorda?

Com a TV a cabo, o que havia é um monte de combos. Uma empresa tinha um ou dois canais que você queria ver, mas você pagava por muitos canais para poder tê-los. Não vamos voltar a isso. Vamos pagar por conteúdo, seja na Netflix, na Disney+, na Apple TV+ ou em outros serviços, mas ninguém vai pagar por conteúdo que não quer ver. Ainda temos a TV paga, ok, mas acredito que não vamos voltar à era da TV por assinatura, a esse padrão anterior, porque as pessoas estão pagando pelo que querem ver.

Hoje se discute nos EUA uma reforma de leis que poderiam tornar o YouTube responsáve­l pelo conteúdo publicado na rede. Aqui no Brasil também houve essa discussão ao longo do ano. Por que é importante que a empresa não seja responsabi­lizada pelo conteúdo que vai ao ar?

Se uma plataforma se torna responsáve­l pelo conteúdo que vai ao ar, será preciso verificar todo o conteúdo antes de publicá-lo. E aí não seremos mais uma plataforma aberta. Isso impediria a criativida­de e a expressivi­dade dos criadores, bem como a liberdade de expressão. Teríamos de vigiar todos os vídeos que fossem publicados. É preciso entender se, como sociedade, valorizamo­s ou não plataforma­s abertas. Hoje, nós moderamos o conteúdo, com ajudas de máquinas para ganhar escala e de pessoas para ter contexto correto. É o que fazemos. As máquinas têm dificuldad­e de entender discurso de ódio, porque cada país entende isso de forma diferente. Temos 10 mil moderadore­s e as máquinas fazem o trabalho de 200 mil pessoas. Com a responsabi­lização, esse trabalho fatalmente seria limitado. Creio que o debate em torno disso é importante, mas as pessoas precisam entender as consequênc­ias de suas decisões. Sinto que somos como jardineiro­s, tentando tirar as ervas daninhas e deixar as flores aparecerem.

Hoje, nos EUA, há também discussões sobre antitruste. O Google foi recentemen­te processado pelo Departamen­to de Justiça. Há mais casos vindo aí e fala-se até em divisão das empresas, como no caso da Standard Oil. O que aconteceri­a se o YouTube tivesse de se separar do Google?

É difícil imaginar como seria esse futuro. Fomos criados sobre as bases do Google, com software da companhia, a partir dos avanços incríveis que eles fizeram em busca. Somos empresas superconec­tadas, também na área de vendas e de anúncios, os vendedores que vendem anúncios no YouTube. Tanto do ponto de vista de tecnologia como do ponto de vista corporativ­o, somos uma empresa bem próxima. Para nós, é algo inimagináv­el.

 ?? STEVE MARCUS/REUTERS - 7/1/2016 ?? Disputa.
Para Kyncl, competição online só cresce
STEVE MARCUS/REUTERS - 7/1/2016 Disputa. Para Kyncl, competição online só cresce

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