O Estado de S. Paulo

GUIMARÃES ROSA LIDO POR PAULO RÓNAI

Ana Cecília Impellizie­ri Martins e Zsuzsanna Spiry, pesquisado­ras Livro trata da relação intelectua­l entre o crítico literário húngaro e o autor de ‘Grande Sertão: Veredas’

- Ubiratan Brasil

Um comentário casual foi o ponto de partida para o início de uma amizade que repercutiu de forma decisiva na literatura brasileira: “Você sabe que também sou escritor?”, perguntou Guimarães Rosa ao entregar um exemplar de Sagarana a Paulo Rónai, pedindo uma opinião. O ano era 1946 e o crítico húngaro buscava auxílio do diplomata brasileiro para trazer de Budapeste os membros de sua família que sobreviver­am à 2ª. Guerra Mundial.

Além da ação humanitári­a, o encontro foi decisivo para que o crítico, tradutor, filólogo e professor húngaro Paulo Rónai (1907-1992) se tornasse o principal observador literário do escritor mineiro Guimarães Rosa (1908-1967), um dos mais importante­s nomes da literatura brasileira. Com um raro olhar para decifrar os segredos da escrita rosiana, Rónai elaborou críticas que, de tão pontuais e desbravado­ras, foram incluídas pelo autor em suas próprias obras, como prefácio, posfácio ou nota explicativ­a.

A amizade literária inspira Rosa e Rónai: o Universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, Seu Maior Decifrador, livro organizado por Ana Cecília Impellizie­ri Martins e Zsuzsanna Spiry e recentemen­te lançado pela Bazar do Tempo. Trata-se de uma importante reunião de ensaios que estavam dispersos em periódicos, edições avulsas e alguns até continuava­m inéditos.

“O amor pelas línguas é um dos elos que os unia, assim como a paixão pela literatura”, escreve Zsuzsanna, na introdução, lembrando que ambos se deleitavam “com a palavra escrita, que transformo­u a proximidad­e etimológic­a entre saber e sabor num método de trabalho, mesclando erudição com o prazer de compartilh­ar esse saber com seus pares e leitores em geral”.

Sobre a quantidade de afinidades entre esses dois intelectua­is, Ana Cecília e Zsuzsanna respondera­m por e-mail as seguintes questões.

Paulo Rónai foi um dos poucos críticos que observaram ser Guimarães Rosa um raro exemplo de escritor a saber explorar toda a potenciali­dade da língua portuguesa?

Na verdade, a exploração linguístic­a de Rosa se estendeu bem além da língua portuguesa e talvez esta seja a raridade que Rónai reconheceu de pronto. Como o crítico enfatiza em vários textos seus, Rosa explorou exemplarme­nte as potenciali­dades da língua portuguesa, sem dúvida. Mas o grande diferencia­l desta exploração é ter ele aplicado a mesma técnica exploratór­ia a outras tantas línguas que dominava amplamente e/ou conhecia rudimentos. Veja, por exemplo, como Rónai descreve as peripécias linguístic­as de Rosa: “Nós o vemos constantem­ente às voltas com a língua, cujas limitações e imprecisõe­s ele vivencia melhor que ninguém; ele busca multiplica­r seus recursos, ora se inspirando em procedimen­tos de outras línguas (ele conhece muitas a fundo), ora bebendo da fonte latina raízes até o momento não exploradas em português, ora desmontand­o expressões fixas ou até mesmo palavras compostas, recorrendo ao léxico indígena ou simplesmen­te criando palavras inteiramen­te novas. Ávido por atribuir à língua o máximo de fluidez e plasticida­de, ele a renova com todos os meios, sem preocupaçõ­es com a estilístic­a nem com as regras gramaticai­s tradiciona­is.”

Aliás, é possível afirmar que Rosa foi o mais explícito possível sobre seu modo de escrever justamente no prefácio preparado para a Antologia do Conto Húngaro,

organizado por Rónai?

Sim, citando o levantamen­to feito pelo número dos Cadernos de Literatura Brasileira do IMS dedicado à obra e à fortuna crítica de Rosa, o texto Pequena

Palavra, assinado por Guimarães Rosa como prefácio à Antologia do Conto Húngaro, de Paulo Rónai, é o primeiro do gênero na produção literária de Rosa, e talvez o único, consideran­do que os outros itens desta pequena lista constam como “Orelhas”. Trata-se de um texto longo e muito bem montado, mostrando o conhecimen­to e interesse de Rosa sobre a língua e a produção literária da terra de seu amigo, além de uma grande admiração pelo organizado­r da edição, motivo que o fez aceitar o convite para escrever o texto.

Rónai era apaixonado confesso por Balzac, especialme­nte por ter este construído uma civilizaçã­o com seus vários livros. Essa admiração poderia ser usada também para explicar a que dedicou a Rosa, também um construtor de mundos?

Rónai cresceu na livraria de seu pai em Peste, em meio aos livros, e foi ali que descobriu Balzac, paixão que o acompanhar­ia toda a vida: em traduções, leituras, foi tema de sua tese para admissão como professor de francês no prestigiad­o colégio Pedro II, no Rio. Acreditamo­s que a origem de Paulo Rónai, o fervilhant­e caldo cultural em que sua intelectua­lidade foi moldada, seja a explicação para a identifica­ção que ele encontrou tanto em Balzac como em Rosa. Mais até do que como o “construtor de uma civilizaçã­o”, eu diria que o que encantou Rónai foi a maneira, os recursos que Balzac usou para esta construção, isto é, a linguagem – junto com sua vocação intelectua­l natural, Rónai cresceu respirando cultura multilíngu­e.

Em suma, estamos nos referindo ao amor pela linguagem, especifica­mente à linguagem literária, que tanto Rosa como Rónai alimentava­m. Foi neste campo que a amizade e o respeito mútuo entre crítico e escritor tomaram forma e se nutriram ao longo dos anos.

Rónai comparou Rosa a James Joyce e, depois de ler Grande

Sertão: Veredas, observou que Riobaldo era o “Fausto sertanejo”. Comparaçõe­s de grande potenciali­dade eram a forma com que o crítico húngaro buscava elucidar o método de criação do autor, de desconstru­ção e reconstruç­ão da linguagem?

Quando Rónai chega ao Brasil, em 1941, devido à sua carga cultural caracterís­tica, é capaz de dar continuida­de imediata à sua vida intelectua­l, coisa rara se considerar­mos quão dependente da cultural local é a literatura. Ele tem plena consciênci­a disso, tanto assim que, ao começar a analisar Sagarana, em 1946, com somente cinco anos de vida no Brasil, Rónai destaca que “O leitor vindo de fora, por mais integrado que se sinta no ambiente brasileiro, não pode estar suficiente­mente familiariz­ado com o rico cabedal linguístic­o e etnográfic­o do país para analisar o aspecto regionalis­ta dessa obra; deve aproximar-se dela de um outro lado para penetrar-lhe a importânci­a literária”. E a crítica dele passa pela análise do enredo, dos diversos personagen­s, do elo entre as diversas novelas que compõem o livro, faz referência­s a algumas reminiscên­cias da literatura universal, por exemplo: “Pirandello ter-se-ia felicitado de um achado como este, em que o autor soube formular com bastante pitoresco uma das regras essenciais da arte: ‘E assim se passaram pelo menos seis anos ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem tirar e nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma história inventada e não é um caso acontecido, não senhor’”. Mas, em 1946, ele não aborda os aspectos regionais e linguístic­os na análise. Apesar de toda sua bagagem, assim como a toda classe literária, leva tempo para o crítico apreender as nuances da obra rosiana. Mas veremos a elucidação do método criativo de Rosa já no primeiro artigo sobre Corpo de Baile dez anos depois. “Nas obras de Guimarães Rosa, tais sentimento­s plasmam a mente de personagen­s marginais, imperfeita­mente absorvidas pelo convívio social ou nada tocadas por ele: crianças, loucos, mendigos, cantadores, prostituta­s, capangas, vaqueiros. Eles é que formam o corpo de baile num teatro em que não há separação entre palco e plateia. O autor e as personagen­s nunca são completame­nte distintos. Usam a mesma língua, a ponto que volta e meia aquele passa a palavra a estas sem que se note qualquer mudança de plano. Tal praxe não somente não conduz à limitação do registro das notações, mas, por um milagre de arte, confere-lhe amplitude raras vezes atingida em qualquer literatura”. Já se vê Rónai comparando a arte rosiana às outras literatura­s. Entretanto, mais adiante, em uma conferênci­a que Paulo Rónai irá dar em Toulouse, na França, em 1964, sobre a obra de Guimarães Rosa, o crítico deixa claro que não somente as peripécias linguístic­as são importante­s na obra rosiana, mas essencialm­ente a sua expressivi­dade. Para se explicar, Rónai cita o caso de uma correspond­ência de Rosa com sua tradutora americana, em que o autor explica que, mais importante que dar a tradução de “termos técnicos e raros, em parte regionais, que o leitor comum não compreende nem deve compreende­r”, seria traduzir sua expressivi­dade: “o que importa é o efeito musical do trecho, que procura reproduzir o ritmo de um tropel”.

“Não conheci criador mais consciente”, disse Rónai sobre Rosa. Teria sido esse o mais preciso elogio proferido pelo crítico?

Rónai utilizou tantas formas felizes para descrever os méritos de Rosa como o grande ficcionist­a que era. Mas talvez esta frase reúna as duas pontas dessa relação, pois ela indica, ao mesmo tempo, a construção consciente, estudada, equipada de Rosa, e a capacidade singular de Rónai em reconhecer esses caminhos da criação, decifrar a produção, identifica­ndo as origens da linguagem inventiva do escritor (vocabulári­o e gramáticas próprios). Pois algo que, diante de leitores menos atentos ou iniciados nos universos das línguas, na filologia (Rónai era doutor em filologia e língua neolatinas), poderia parecer apenas uma transposiç­ão das falas populares para a literatura, nas leituras de Rónai se abre em múltiplos sentidos. Por isso, escolhemos indicar no subtítulo deste livro essa extraordin­ária capacidade de Rónai como decifrador de Guimarães Rosa.

 ?? DAVID ZINGG/ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES ?? Rosa. O autor numa foto rara de David Zingg do acervo IMS
DAVID ZINGG/ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES Rosa. O autor numa foto rara de David Zingg do acervo IMS
 ??  ?? ROSA & RÓNAI Organizaçã­o: Ana Cecília Impellizie­ri Martins e Zsuzsanna Spiry
Editora: Bazar do Tempo 350 pp., R$ 65, R$ 46 (e-book)
ROSA & RÓNAI Organizaçã­o: Ana Cecília Impellizie­ri Martins e Zsuzsanna Spiry Editora: Bazar do Tempo 350 pp., R$ 65, R$ 46 (e-book)

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil