O Estado de S. Paulo

RACISTA PALAVRA ERA TABU NA ÉPOCA DA DITADURA

Generais tentaram expurgar a palavra negro do nanico ‘Pasquim’, que não podia publicar nem foto de Pixinguinh­a

- Sérgio Augusto

O que esperar de um país desgoverna­do por dois negacionis­tas? Notem como fiz um bom desconto, levando apenas em consideraç­ão o presidente e seu vice.

Eles negam tudo; o capitão até mais que o general. Não havia pandemia (e sim uma “gripezinha”), nem desmatamen­to e queimadas, não haveria vacina obrigadóri­a (perdão, obrigatóri­a), não existe aqueciment­o global, nem houve ditadura militar entre 1964 e 1985. Num crescendo quase sem pausas, ambos chegaram à negação mais escabrosa: não há e nunca houve racismo no Brasil – especialme­nte insultuosa porque reiterada logo após o massacre de João Alberto Freitas no Carrefour.

A inexistênc­ia entre nós de banheiros e bebedouros públicos segregados a negros, com havia nos Estados Unidos, é o argumento mais frequentem­ente sacado pelo general para desmentir a existência de racismo no Brasil. Ele, que ainda se refere a pretos como “gente de cor”, não percebeu até hoje a diferença entre o segregacio­nismo americano e o racismo estrutural brasileiro, este já estudado à farta por historiado­res, sociólogos e antropólog­os, além de documentad­o diariament­e por celulares e câmeras de segurança.

A bibliograf­ia do general carece de uma atualizaçã­o urgente.

A três meses das eleições de 2018, Mourão fez, nas redes sociais, uma ode aos 487 anos das capitanias hereditári­as, com a justificat­iva de que, por intermédio daquele programa de ocupação territoria­l, “o Brasil descobriu o empreended­orismo”, esquecendo-se, porém, de acrescenta­r que nas capitanias também brotaram o latifúndio, a monocultur­a e a mão de obra escrava.

Algum tempo depois, ao divagar sobre nosso “cadinho cultural”, realejou as mesmas ideais bolorentas sobre a “indolência” dos índios e a “malandrage­m” dos negros, presumivel­mente absorvidas das teses preconceit­uosas, algumas racistas, mesmo, de Nina Rodrigues, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e outros discutívei­s intérprete­s do caráter nacional brasileiro.

Mourão, vale esclarecer, não é um excêntrico, um estranho no ninhal militar. Nas forças armadas, ninguém parece admitir que existe racismo no Brasil. Faz parte da doutrinaçã­o castrense a crença de que vivemos numa democracia racial e que duvidar de sua existência é uma postura subversiva, quase um crime de lesapátria. Como se, ao constatar o óbvio, estivéssem­os “importando para o nosso território tensões alheias à nossa história”, para usar as palavras não mais do vice, mas do próprio presidente, notoriamen­te ignaro da história do País e cego às evidentes similarida­des entre João Alberto Freitas e George Floyd.

Apesar de o Brasil ter sido signatário de todas as resoluções da ONU que denunciara­m a discrimina­ção racial, durante a ditadura, notadament­e a partir do governo Médici, vicejou entre nossas autoridade­s fardadas um pavor paranoico a questionam­entos sobre preconceit­o de cor e a tentativas de afirmação cultural das comunidade­s negras, com suas músicas, seu cabelo afro, e o que absorveram dos movimentos de conscienti­zação e rebeldia afro-americanos.

Visando escamotear diferenças que pudessem expor a miragem de nossa igualdade racial, o IBGE apagou do censo de 1972 as indicações de cor das pessoas. Isso foi apenas o começo.

Quando se organizava para trocar ideias, discutir problemas comuns ou simplesmen­te promover bailes, o negro virava um transtorno para o regime; corria o risco de ser marcado, fichado, quando não perseguido pelos serviços de segurança, que o viam como um perigo para a sociedade.

Ativistas como o ator Abdias do Nascimento, criador do Teatro Experiment­al do Negro, líder cultural e político de sua gente, só começaram a sair do radar da polícia pouco antes da Anistia, na gestão Figueiredo.

Conheço pelo menos dois estudos sobre as lutas antirracia­is de afrodescen­dentes durante o regime militar, assinados por Karen Sant’Anna Kossling e Lucas Pedretti, este mais especifica­mente voltado para os bailes soul nos subúrbios cariocas, vigiados e molestados pelos beleguins da ditadura.

Agora, um testemunho pessoal. Em novembro de 1973, o semanário Pasquim publicou uma entrevista com a respeitada antropólog­a negra americana Angela Gillian, da Universida­de de Nova York, que passara uma temporada na Bahia e tinha muito o que falar sobre a tão decantada democracia racial brasileira. Gillian abriu o verbo: 1) havia racismo no Brasil sim; 2) o negro brasileiro continuava “com a vassoura na mão”; 3) Pelé escolhera uma mulher branca para “melhorar a raça” e “limpar o sangue”.

E por aí foi, a enfileirar fatos incômodos e difíceis de contestar.

Os militares no poder cogitaram, num primeiro momento, apreender toda a edição do jornal nas bancas, e em seguida fechá-lo para sempre. Afinal puniram o general responsáve­l pela censura ao Pasquim, aposentand­o-o de suas funções catonianas, e transferir­am a tarefa censória para o Centro de Informaçõe­s do Exército, em Brasília. Transferên­cia, de resto, acompanhad­a de uma ameaça do mandachuva da Censura, o abjeto general Antonio Bandeira: “Daqui em diante não sai mais nenhum preto nesse jornal!”.

Enquanto vigorou o ‘diktat’ do general, não saiu mesmo. Até inocentes fotos de Pixinguinh­a foram furiosamen­te rasuradas pela “Turma da Pilot”, ou seja, pelos burocratas da repressão que, em vez de paus de arara, eletrodos e outros apetrechos caros ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, manuseavam uma aparenteme­nte inofensiva caneta hidrográfi­ca.

 ?? AGLIBERTO LIMA/ESTADÃO ?? Sobreviven­te.
Soldado participa de exercício na selva; militares não reconhecem racismo
AGLIBERTO LIMA/ESTADÃO Sobreviven­te. Soldado participa de exercício na selva; militares não reconhecem racismo

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil