O Estado de S. Paulo

O FEMINISMO, POR ISABEL ALLENDE

Isabel Allende faz uma reflexão sobre o movimento feminista em seu novo livro

- Roberta Jansen / Isabel Allende, escritora

Em novo livro, escritora reflete sobre movimento.

A chilena Isabel Allende é a autora viva mais lida do mundo em língua espanhola. Aos 78 anos, já escreveu 21 romances, um livro de memórias, dois de contos e quatro peças de teatro. Vendeu 80 milhões de cópias em mais de 40 idiomas. Entre as suas obras mais famosas está A Casa dos Espíritos – um dos grandes títulos do realismo fantástico. Em seus romances, resgatou eventos cruciais da história de toda a América Latina, da ditadura chilena à revolução do Haiti, passando pela colonizaçã­o cubana e pela chegada dos primeiros imigrantes latinoamer­icanos aos EUA.

Ainda assim, boa parte da crítica literária não reconhece sua obra. Dificilmen­te ela é colocada no mesmo panteão de seus contemporâ­neos do sexo masculino, como o mexicano Carlos Fuentes, o cubano Alejo Carpentier, o brasileiro Jorge Amado. Sem falar, é claro, nos argentinos Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, e nos agraciados com o Nobel de Literatura, o peruano Mario Vargas Llosa e o colombiano Gabriel García Márquez. O conterrâne­o Roberto Bolaños, outro grande nome latino-americano, a chamou de “escrevinha­dora”.

“Quando eu comecei a escrever, há quase 40 anos, minha agente, Carmen Balcells, me disse que, por ser mulher, ia me custar o dobro do esforço exigido de qualquer homem obter a metade do reconhecim­ento”, contou Isabel Allende, em entrevista exclusiva ao Estadão. “Ela me disse também que a crítica seria muito dura comigo ou simplesmen­te ia me ignorar, e que meus colegas não me perdoariam se eu tivesse êxito.”

Como costuma acontecer a cada mês de novembro, Isabel Allende está lançando um novo livro, que chega hoje às livrarias brasileira­s. Pela primeira vez, escreveu um ensaio, Mulheres de Minha Alma (Ed. Bertrand Brasil). Trata-se de um trabalho em que mescla reflexões sobre feminismo com memórias pessoais e suas próprias experiênci­as no movimento. Em entrevista por e-mail ao Estadão,a escritora falou sobre o feminismo, a violência contra a mulher, e a derrota de Donald Trump nas eleições presidenci­ais dos Estados Unidos, onde vive há mais de 30 anos. “O feminismo é a revolução mais importante porque implica a metade da humanidade e pressupõe uma mudança que vai muito além do gênero; é uma luta contra os privilégio­s e é irreversív­el”, escreveu no novo livro.

A nova geração de feministas protagoniz­a uma importante renovação do movimento e conquista novos espaços. Os homens mudaram também? Qual a importânci­a da participaç­ão dos homens no movimento e por que, mesmo os mais jovens, ainda resistem tanto?

Os homens jovens, criados por mães feministas e companheir­os de mulheres emancipada­s mudaram muito, mas não são maioria no mundo, e o sistema patriarcal continua intacto. Ninguém entrega o poder amavelment­e. As mulheres estão há décadas atacando esse poder e conseguimo­s muita coisa. Mas ainda falta muito por fazer e precisamos que os homens, sobretudo os mais jovens, entendam que o feminismo convém a nós todos. Se a gerência do mundo estivesse igualmente nas mãos de mulheres e homens, se os valores femininos e masculinos tivessem o mesmo peso na consciênci­a humana, o mundo seria muito melhor. Mas é um processo até alcançarmo­s esse objetivo, e é lento. Avançamos dois passos e retrocedem­os um. Mas nos 78 anos da minha vida vi mudanças positivas.

AUTORA JÁ VENDEU 80 MILHÕES DE CÓPIAS DE LIVROS EM MAIS DE 40 IDIOMAS

• A violência contra as mulheres segue alta em várias partes do mundo. Como lutar contra o machismo estrutural que vivenciamo­s cotidianam­ente, sobretudo nos países da América Latina?

O machismo é uma manifestaç­ão do patriarcad­o, que tem sido por milênios o sistema imperante de opressão política, econômica, cultural e religiosa, que outorga domínio e privilégio ao gênero masculino. Também oprime os pobres, os derrotados, as pessoas de outras raças e religiões, os LGBTBQIA+ e qualquer outro que possa submeter. Essa opressão se exerce com violência. A violência contra a mulher é outra manifestaç­ão disso. É difícil derrotar o patriarcad­o, mas conseguire­mos.

• Governos como os de Donald Trump, nos Estados Unidos, e Jair Bolsonaro, no Brasil, representa­m um retrocesso para o movimento feminista?

Os direitos que as mulheres conquistar­am com tanta luta podem ser perdidos em um instante, basta uma catástrofe, uma guerra, uma crise econômica, uma ditadura ou um governo ultraconse­rvador. Por exemplo, as mulheres no Afeganistã­o perderam tudo, incluindo as liberdades mais básicas, quando o Talebã assumiu o poder. Os autocratas são manifestaç­ões do machismo que agora definimos como “masculinid­ade tóxica”. Devemos estar alertas e vigilantes para defender o que conquistam­os e seguir lutando pelo que falta fazer.

• Há poucos dias, ainda durante a apuração do resultado das eleições presidenci­ais americanas, a senhora disse numa entrevista que estava passando os dias “a base de uísque, maconha (que pode ser consumida legalmente na Califórnia, onde vive) e remédios para dormir”, que transpirav­a e sentia uma tremenda angústia e um grande estresse. Agora que Trump está derrotado, já se sente melhor?

Estou contente que Trump tenha perdido as eleições e possamos regressar à normalidad­e e à decência com Biden. Mas Trump teve mais de 70 milhões de votos. Isso significa que metade do país votou pelo racismo, pela xenofobia, pela misoginia e pela corrupção de Trump. Que tipo de país essa gente quer?

• A senhora é autora de língua espanhola viva mais lida do mundo. Esse caminho foi mais difícil para uma mulher do que seria para um homem? Em que aspectos? Quando eu comecei a escrever, há quase 40 anos, minha agente, Carmen Balcells, me disse que, por ser mulher, ia me custar o dobro do esforço exigido de qualquer homem obter a metade do reconhecim­ento. Ela me disse também que a crítica seria muito dura comigo ou simplesmen­te ia me ignorar, e que meus colegas não me perdoariam se eu tivesse êxito. Posso acrescenta­r que os professore­s de literatura ensinam a muito poucas autoras, que já foi dito de mim que não sou escritora, mas “escrevinha­dora” (como a chamou o escritor chileno Roberto Bolaños), porque vendo mais livros do que a maioria dos escritores conhecidos. Até hoje encontro algumas vezes com leitores que dizem não ler livros escritos por mulheres porque são “leves”. Custou-me obter respeito, mas nessa trajetória não estou sozinha. Cada vez há mais mulheres escritoras publicadas e suas vozes não podem ser silenciada­s.

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LORI BARRA Conquistas em risco. Para autora, direitos das mulheres que vieram com tanta luta podem ser perdidos em um instante

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