O Estado de S. Paulo

O espectro da fome

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Ante o impacto planetário da pandemia, a atribuição do Prêmio Nobel da Paz para o Programa Mundial de Alimentos da ONU (WFP, na sigla em inglês) foi mais que oportuna. A principal agência humanitári­a das Nações Unidas responde pelo maior programa de combate à fome no mundo. Como notou a própria entidade, o prêmio é um “poderoso lembrete de que a paz e a erradicaçã­o da fome são indissociá­veis”.

Em todo o mundo, cerca de 821 milhões de pessoas estão em situação de inseguranç­a alimentar. São 135 milhões que passam fome, e a eles se juntarão mais 130 milhões. Ou seja, a fome dobrará.

A situação no Brasil também é alarmante. Em 2004, 35% dos domicílios estavam em situação de inseguranç­a alimentar. Essa parcela chegou a cair para 22,6% em 2013. Agora, porém, como alertou ao Estado Daniel Balaban, chefe do escritório brasileiro do WFP, o País caminha “a passos largos” para voltar ao Mapa da Fome. Os passos foram alargados com a pandemia, mas começaram a ser trilhados bem antes dela. Com a recessão de 2014, milhões de domicílios passaram para o estado de inseguranç­a alimentar, chegando a 36,7% do total em 2018. Em cinco anos, a fome aumentou 43,7%. Até o fim de 2020, 5,4 milhões de brasileiro­s devem cair na vala comum da miséria, totalizand­o quase 15 milhões, 7% da população.

Os desafios mais dramáticos enfrentado­s pelo WFP no mundo vão muito além dos problemas que afligem o Brasil, envolvendo a atuação em zonas de conflito onde a fome chega a ser utilizada como arma para aniquilar populações tidas por inimigas. Mas há os desafios análogos. O Comitê do Nobel apontou que o prêmio ao WFP também simboliza a “necessidad­e de solidaried­ade e multilater­alismo”. O que o multilater­alismo é no cenário internacio­nal, a cooperação federativa é no nacional. “O grande drama é que não há uma unicidade, um comando que lidere o Brasil como um todo para sair desta pandemia”, alertou Balaban. “O governo federal tem uma linha difusa, não sabe se apoia ou não a OMS, se apoia ou não a quarentena.”

Outra diferença em relação às calamidade­s enfrentada­s pelo WFP é que a fome no Brasil não é causada pela falta de comida, mas de dinheiro. Em relação a políticas públicas, não há como exagerar a importânci­a deste fato, mas também não se pode minimizar o escândalo nele implícito: o País produz muito mais do que o suficiente para alimentar toda a população – é um dos maiores exportador­es de alimento do mundo – e ainda assim milhões de famílias passam fome.

O auxílio emergencia­l mostrou a importânci­a de construir uma salvaguard­a contra a miséria. Em razão dele, segundo a FGV Social, o número de pobres caiu 23,7%, mas com o fim do programa esse contingent­e voltará à pobreza. O Planalto tenta elaborar um novo programa de renda mínima – se não por mais nada, pelo seu valor eleitoral –, mas, como sempre, de maneira desarticul­ada e inepta. O governo já propôs de tudo, até medidas ilegais, como o uso de precatório­s, mas reluta em encampar mudanças estruturai­s que poderiam reduzir gastos (como a reforma administra­tiva, o Pacto Federativo ou a PEC dos gatilhos emergencia­is), ou promover mecanismos distributi­vos (como a reforma tributária), ou reduzir a dívida pública (desestatiz­ação).

Como disse o Papa Francisco em sua encíclica Todos irmãos: “Ajudar os pobres com dinheiro deve sempre ser um remédio provisório para enfrentar emergência­s. O verdadeiro objetivo deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho”. Mas, se os quadros do governo batem cabeça para garantir um programa de renda que lhe garanta a reeleição, não há nada remotament­e parecido com um roteiro de recuperaçã­o, produtivid­ade, trabalho e educação.

Os cavaleiros do apocalipse jamais cavalgam sós. Com a peste, vem a fome; e com elas, a guerra e a morte. O Brasil não é assolado por conflitos civis, mas a criminalid­ade é devastador­a. Se o flagelo do crime não pode ser reduzido à carência material, ela é sem dúvida a sua mola principal. Não é admissível que na 9.ª maior economia do mundo tantas pessoas morram pela fome ou pela bala.

Até o fim de 2020, 5,4 milhões de brasileiro­s devem cair na vala comum da miséria

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